João Labrincha: “Em termos de manifestações inorgânicas, há um antes e um depois da Geração à Rasca”
Em 2011, quatro amigos sentavam-se a uma mesa e percebiam que eram todos precários. A 5 de Fevereiro, inspirado na dinâmica das Primaveras Árabes, João Labrincha criava o evento no Facebook que marcou o início oficial da marcante manifestação Geração à Rasca — a 12 de Março, 500 mil pessoas saíam à rua. Dez anos depois, olha para trás para pensar no presente e no futuro. Depoimento na primeira pessoa feito a partir de entrevista.
“Às 15h15, a 12 de Março de 2011, decidimos começar a descer a Avenida da Liberdade. Estariam 500 pessoas atrás de nós e lembro-me de dizer a um polícia: ‘Se calhar vamos pela lateral, para não estar a fechar a Avenida toda’. Ele respondeu-me: ‘Não, não. O metro está completamente empacotado e já temos a cidade toda cortada. Vocês vão encher a Avenida da Liberdade toda, portanto façam o favor de vir por aqui.’
Às 15h20, porque a malta atrasa sempre um bocado, ele acaba de falar e eu começo a ver gente a aparecer de frente para nós e a chegar de todos os lados. Aí estremeci. Fiquei um pouco apavorado, mas com muita felicidade por perceber que havia um mar de gente, algo indescritível, que não imaginei que pudesse acontecer. Foi talvez o momento mais marcante da minha vida.
O sentimento que temos, e o mote das comemorações dos dez anos da Geração à Rasca, é que obviamente a precariedade mantém-se. Deram-se pequenos avanços na lei, mas ficou na lei. Continua a haver muito precariado, só que agora ainda se acrescentou mais um nível, que é a ascensão da extrema-direita em Portugal. Em risco não estão só direitos laborais, económicos e sociais, que era o que pedíamos para ser tido em conta há dez anos; agora ainda acrescentamos a isso direitos cívicos e políticos.
Depois, há agora a agravante de não podermos ir para a rua. Podes fazer muita coisa online, mas o protesto da Geração À Rasca se calhar foi a prova de como não é a mesma coisa. Nós aproveitamos uma dinâmica que vinha das Primaveras Árabes, de usar as ferramentas do Facebook não só como forma de manifestarmos o nosso protesto, mas como forma de mobilizar para a rua. Vimos essa dinâmica do Norte de África e trouxemo-la para a Europa, numa altura em que isso era possível e em que se percebeu que só se viam alguns resultados numa luta que comece nas redes sociais — como ferramentas mobilizadoras e até aglutinadoras de pessoas que moram longe e têm os mesmos interesses políticos e as mesmas preocupações — mas que não fique por aí. O que depois fez toda a diferença foi termos ido para a rua, foi eu e os meus amigos termos essa percepção e a partir desse momento começarmos a mexer-nos e a fazer com que isso acontecesse.
E viu-se o impacto. Em termos de manifestações inorgânicas, há um antes e um depois da Geração à Rasca, em Portugal. Tal como o movimento social deu uma resposta muito visível, em 2011, à questão da precariedade, hoje precisa de se mobilizar para colmatar outras questões.
É normal haver as crises do capitalismo, o que não é normal é existirem crises tão profundas e tão próximas uma da outra. Preocupa-me a abertura que isto dá a que mais pessoas sigam ideologias nem sequer muito racionais. Quando começamos a falar de impulsos tão básicos como a sobrevivência, a racionalidade depois é muito subjectiva. Como é que comunicamos de forma a responder ao medo, mas com uma mensagem positiva? É um desafio para mim enquanto activista e profissional na área da comunicação.
Somos a geração que está a levar com duas crises crises profundas, talvez das maiores do século a acontecerem as duas seguidas, em dois momentos cruciais: precisamente no momento em que estaríamos a entrar no mercado de trabalho e, agora, quando estaríamos minimamente estabelecidos na nossa carreira profissional — se é que existe carreira para um precário a recibos verdes.
Não só não conseguimos esta entrada de uma forma normal, ágil, como agora, no momento em que poderíamos estar a progredir na carreira, poderíamos estar a ambicionar ter filhos, ter uma casa. Falamos do direito a constituir família e do direito à habitação, direitos constitucionais que, depois, quando vemos a economia funcionar sem aquilo que eu acho que deveria ser uma maior regulamentação, faz com que direitos que estão na lei não passem disso.
No meu caso, decidi que quero dedicar os próximos dez anos a duas metas no meu activismo. A luta pelos direitos humanos, isto é, assegurar que o futuro dos meus amigos e familiares é num sítio onde existem direitos e são garantidos os direitos de todas as pessoas, porque isso está em risco, e lutar para que possamos viver não só em liberdade, mas viver, literalmente. Porque não nos vale de nada termos direitos se não pudermos respirar, se não pudermos beber água. Precisamos de tudo isto e tudo isto está ligado, incluindo as pessoas nos movimentos sociais. E hoje eu vejo estas intersecções acima de tudo na minha luta.”