Morte covid-19: dúvidas que me assaltam
Qual o nível de contágio da covid-19 que o corpo morto há dias pode transmitir aos seres vivos? Haveria algum perigo de os familiares mais próximos poderem estar um breve tempo junto aos restos mortais do seu defunto ou defunta, sem ter de o esperar à porta do cemitério e do crematório?
A morte humana é mais que o terminar da vida. Tem impactos emocionais incontornáveis nos sentimentos dos mais próximos que continuam a viver. Por vezes, são impactos tão profundos que tocam no mais íntimo do ser, criando perturbações ao nível da saúde mental. Para suavizar, tanto quanto possível, a dor da ausência física, cada cultura encontrou rituais próprios assentes em simbolismos e formação de relação afetiva e solidária. No plano religioso, há ainda que ter em conta convicções que, no respeito pela liberdade individual de cada um, têm de ser respeitadas.
Com a pandemia foram criadas várias restrições à possibilidade do cumprimento destes rituais. Já participei, em parte, em alguns funerais e invadem-me sentimentos de um vazio interior e de desumanidade, para os meus amigos que estão a viver dores indescritíveis. Receio que as diretrizes tomadas, não uniformes, pois ficaram ao critério discricionário das autarquias, segundo me apercebo, deixem marcas na área da saúde mental que, mais cedo ou mais tarde, se pagarão caro.
Motivei-me a exprimir a minha opinião, ao ler, num diário regional de Setúbal, uma peça com o depoimento de agentes funerários. Transcrevo, apenas, alguns trechos do mesmo: “Catástrofe social agravada pela ausência de ritos fúnebres e homenagens na hora da morte que, no futuro, vai trazer consequências psicológicas graves"; “E duas semanas de espera para as famílias realizarem os funerais"; “as famílias só querem dar um funeral condigno aos seus familiares o mais rápido possível”. Por isso, quando lhes é dado a escolher, “dizem para avançarmos com o que estiver a ser mais célere”. Agora, para alargar esta atuação, no futuro “são necessários estudos conclusivos sobre o comportamento deste coronavírus nos corpos, após a morte, e o índice de perigosidade de contágio”.
Porque me assaltam também algumas dúvidas, partilho-as: qual o nível de contágio da covid-19 que o corpo morto há dias pode transmitir aos seres vivos, para que os corpos sejam metidos em sacos de plásticos e as urnas quase hermeticamente encerradas?; qual a razão de ser para que seja apenas autorizada a entrada de dez pessoas em cemitérios com dimensões que permitem um distanciamento físico maior que o definido pelas normas sanitárias?; porque não é possibilitado, pelo menos, aos familiares que o desejarem, ver o seu ente querido cadáver?
Já não abordo os tempos de velórios, sobretudo nesta ocasião de confinamento mais severo, para não se correr o risco do não cumprimento do número de pessoas conforme a dimensão dos espaços por parte de pessoas mais irresponsáveis. Mas haveria algum perigo de os familiares mais próximos poderem estar um breve tempo junto aos restos mortais do seu defunto ou defunta, sem ter de o esperar à porta do cemitério e do crematório, e sê-lo retirado, de imediato, do alcance do seu olhar? Poderão parecer questões insignificantes. Talvez o sejam para quem ainda não as viveu ou cuja sensibilidade não seja tão apurada. Mas há que pensar e valorizar os que sentem de maneira diferente.
Não tenho – reafirmo – certezas científicas sobre esta matéria. Sei, por contactos que vou tendo, que há gente em sofrimento por não lhes ter sido dada a possibilidade de fazer o luto no tempo certo. Não se poderiam encontrar outras formas mais humanizadas? Confio as minhas interrogações aos cientistas e, depois do parecer deles, a decisão aos políticos a quem compete assegurar o bem-estar físico, psíquico, emocional e espiritual do povo.
Claro, o meu desejo fundamental é, antes de tudo, o findar deste tormento que se abateu sobre o mundo, e todos nos devemos sacrificar para vencer este combate.
Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico