A Covid-19 deixou o cancro em suspenso
“O cancro não espera em casa” é o mote da mais recente campanha promovida pela Sociedade Portuguesa de Oncologia, com o apoio da GSK, que tem como objectivo alertar para a importância do diagnóstico precoce e o acompanhamento dos doentes oncológicos. No Dia Mundial de Luta Contra o Cancro, comemorado a 4 de Fevereiro, a mensagem sai mais reforçada.
A decorrer nas páginas de Facebook da Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO) e da Associação Movimento Oncológico Ginecológico (MOG), a campanha pretende sensibilizar a população para a importância de continuar a fazer exames de rotina e rastreios que permitem detectar a doença atempadamente e para a necessidade dos doentes oncológicos terem acesso aos seus tratamentos e cirurgias. “Todos nós sabemos que quando se faz um diagnóstico de cancro, seja ele qual for, em fases muito iniciais, maior é a probabilidade de cura”, explica Ana Raimundo, presidente da SPO.
Segundo dados da Liga Portuguesa Contra o Cancro, citados pela médica oncologista, entre Março e Junho de 2020, ficaram por diagnosticar mais de mil cancros devido à interrupção dos rastreios de base populacional, ou seja, cancros da mama, colo do útero ou colo-rectal. “A partir de Junho, foram retomados os rastreios de cancro da mama, mas muito lentamente e com menor capacidade de realização por precaução devido à pandemia e, os outros, estão muito dependentes das unidades de saúde familiares não tendo ainda sido reiniciados.”
Os rastreios detectam a doença numa fase muito inicial e sem que a doença dê algum sintoma. Alguns tipos de cancro surgem de forma silenciosa, o que pode atrasar o diagnóstico e, quanto mais for adiada a procura de ajuda médica, pior será o prognóstico. Ana Raimundo chama a atenção para alguns sinais de alerta, como por exemplo, “um emagrecimento inexplicado, sangue nas fezes (que se mantém), um nódulo que se identifica, um sinal que cresce rapidamente e que precisa de ser observado”. E ainda que considere que o Sistema Nacional de Saúde não tem a mesma capacidade de resposta que tinha em 2019, perante uma desconfiança de que algo não está bem, não se deve esperar meses. “Não se pode desistir. É óbvio que temos consciência e compreendemos que a situação actual é complexa, mas as outras doenças não podem ser esquecidas. É obrigatório que, paralelamente aos cuidados prestados a doentes com Covid-19, sejam prestados cuidados a pessoas que tenham outras doenças graves, como é o caso do cancro”, sublinha.
Quando a rapidez faz a diferença
Cláudia Fraga fundou o Movimento Oncológico Ginecológico (MOG), uma associação sem fins lucrativos, criada formalmente em Dezembro de 2019. A também presidente exemplifica com a sua história pessoal o que poderia ter ditado o decurso bem mais reservado da sua doença. Se hoje “está cá para contar a história”, muito se deveu à celeridade com que começou a ser tratada. Se fosse hoje, em tempos de pandemia, não teria a mesma certeza do desfecho. “A Covid-19 deixa-nos em suspenso e os cancros não esperam”, afirma. “O cancro do ovário é silencioso e, muitas vezes, quando há uma manifestação, já é tarde. No meu caso, o primeiro sinal de alerta aconteceu a 31 de Agosto de 2015 e fui operada a 6 de Outubro do mesmo ano. Se assim não fosse, já não estaria cá.” Apesar de ser totalmente adepta do Serviço Nacional de Saúde, teve de recorrer ao privado.
Começou por sentir um cansaço fora do normal – que não relevou – mas tem noção que os sinais são ténues e facilmente desvalorizados. “Há muitas mulheres a morrer de cancro ginecológico que nem sequer tiveram um diagnóstico. Uma dor de barriga pode ser ignorada porque aparentemente não é motivo para uma mulher ir a correr para o hospital”, defende. A diversidade de sintomas inespecíficos pode ser um dos motivos que explicam que, todos os anos, morram 600 mulheres em Portugal com cancro ginecológico. “No caso do cancro do ovário, se se detecta tarde, pode ter uma evolução galopante.”
Cláudia Fraga era professora de educação física com mestrado na área da saúde, mas a doença antecipou a reforma. Em 2018, teve uma recidiva localizada no intestino, fez quatro cirurgias e actualmente toma 16 comprimidos por dia. “Ao ver mulheres a chorar nas salas de espera das consultas, senti que tinha a obrigação de fazer alguma coisa.” Foi dessa necessidade que surgiu o MOG que ocupa grande parte dos seus dias e que surge como parceiro da campanha da SPO. “Temos recebido muitos contactos por parte de mulheres, nem sempre associadas, porque viram os seus exames e consultas adiados ou cancelados. Isto desenvolve uma enorme ansiedade às doentes, algumas com doença activa e, a maioria, em vigilância”, revela, sublinhando que esta realidade é sobretudo preocupante nos hospitais que estão a trabalhar na linha da frente da Covid-19.
E, apesar de as pessoas com cancro terem um sistema imunitário mais debilitado, Ana Raimundo apela a que “não tenham medo” de se dirigirem às unidades de saúde. “Não desistam porque a pandemia vai passar e a vida vai continuar. Os sistemas de saúde organizaram circuitos que separam a assistência a doentes Covid e a outros doentes. Depois da avaliação de um médico, se o mesmo considerar que são necessários exames complementares de diagnóstico, devem fazê-los de imediato até porque o agendamento dos mesmos também está atrasado”, defende.
Nesta campanha, a SPO reforça ainda a necessidade de continuar a encontrar alternativas e mecanismos de resposta para os doentes oncológicos e de haver uma maior adesão aos rastreios do cancro ao longo do ano de 2021. Uma das formas de responder passa pela realização de teleconsulta ou vídeoconsulta. E a posição da SPO é muito clara quanto à sua relevância nesta fase. “A maioria dos médicos oncologistas defende a realização de teleconsultas desde que isso não prejudique o seguimento e o tratamento do doente. É perfeitamente possível realizar uma teleconsulta ou videoconsulta nos casos de consultas de avaliação de toxicidade e de follow-up.” Se na teleconsulta se verificar que há algo que merece ser investigado é sugerida a marcação de uma nova consulta presencial”.
Quanto ao futuro, a presidente da SPO não consegue antecipar metas muito positivas para o ano de 2021. “Não vejo que os próximos meses, até meio do ano, possam ser muito fáceis para responder àquilo que ficou para trás. Julgo que deveria ter existido um plano para os doentes oncológicos porque as listas de espera que já existiam vão continuar a aumentar. Penso que não vai ser possível recuperar tão rapidamente”, conclui.