Não somos como os alemães
Pode ser-se condescendente com quem comete erros e os assume, porque a assunção transmite a ideia, pelo menos, de uma intenção de desenvolver esforços no sentido de evitar tais erros no futuro. Mas não se pode ser condescendente com quem não tem a humildade desse reconhecimento.
1. Uma comparação independente de Portugal com a Alemanha dificilmente deixará de enfatizar que este país é mais desenvolvido, mais rico, mais organizado. Mesmo que os cidadãos alemães não sejam os mais calorosos no relacionamento, e por isso possam ser apelidados de “frios”; ou não se compadeçam com aqueles que não têm o seu nível de organização, dando-se um “ar de superioridade”, o facto é que têm qualidades que deveriam ser, para qualquer cidadão português, para o país globalmente considerado, um modelo a seguir. Salientam-se, de modo particular, as suas capacidades de planeamento e organização, aos mais diversos níveis da vida social.
Porém, em tertúlias em que comparações entre países são tema, a Alemanha, ou países congéneres, estão arredados de qualquer consideração favorável nesses domínios. Aquilo que se escuta é o louvar, o sobrevalorizar, a capacidade de improviso – o célebre “desenrascanço” – dos portugueses face à rigidez organizativa e de planeamento alemã. Se é certo que uma pitada de improviso pode, em determinadas situações, dar um pouco de colorido à vida, esta, sem organização e planeamento, baseada na improvisação, tende a ser um exercício de equilibrismo feito à beira do precipício, perto do desastre.
Mesmo quando este não acontece, por um qualquer golpe de sorte, a falta de organização e planeamento na vida coletiva não é isenta de acrescidos custos. Veja-se o que se passa ao nível económico, por exemplo, com a implementação de uma qualquer obra pública, onde a regra é a verificação de um fosso entre o custo estimado e o efetivamente suportado, bem como a incapacidade de concluir a obra no prazo previsto, fruto, sobretudo, da referida falta de planeamento. A situação é muito pior quando o contexto subjacente à vida coletiva toma contornos de catástrofe, como é atualmente o caso, com a pandemia. A sorte inerente aos golpes de improviso esgotou-se rapidamente, a falta de planeamento conduziu inevitavelmente ao desastre.
Não chocará se se assumir que, apesar dos nossos esforços individuais e coletivos, ainda não temos um sentido de organização e planeamento como os alemães, mas que temos consciência de que é esse o modelo a seguir, o caminho a percorrer em termos de aperfeiçoamento. Isto é, se se assumir que se está num processo de melhoria, procurando absorver o que de melhor os outros povos têm. O que choca é ouvir dizer “não somos como os alemães”, justificando deste modo a falta de organização e planeamento da máquina estatal e as tão graves consequências que daí estão a resultar para a gestão da pandemia.
No entanto, foi esse o argumento que a ministra da Saúde usou no decurso de uma entrevista à RTP1, no passado dia 25 de janeiro, para se defender da acusação dirigida ao Ministério da Saúde de falta de planeamento para lidar com os efeitos da denominada 3.ª vaga pandémica. A senhora ministra não conseguiu assumir as suas responsabilidades, preferindo apresentar-se como vítima de um fado do qual não consegue libertar-se, o da falta crónica de organização e planeamento.
Pode ser-se condescendente com quem comete erros e os assume, porque a assunção transmite a ideia, pelo menos, de uma intenção de desenvolver esforços no sentido de evitar tais erros no futuro. Não se pode ser condescendente com quem não tem a humildade desse reconhecimento, porque os comportamentos que levaram a esses erros nunca serão corrigidos, tudo voltando a repetir-se.
Não deve haver ninguém nesta altura que almeje o lugar da senhora ministra. O cansaço extremo de que ela dá mostra, o parecer estar à beira de um colapso nervoso, é, julga-se, sinal que desencorajará potenciais pretendentes. No entanto, pese o reconhecimento das dificuldades inerentes à atual gestão do ministério, não lhe é permitido que, com a sua desculpa e alijar de responsabilidades, implicitamente atire à cara dos cidadãos “que a sua desorganização e falta de planeamento não é diferente da deles”, esquecendo que os governantes devem ser líderes, pessoas capazes de gerir por antecipação, não meros burocratas que se limitam a reagir aos acontecimentos e a aparecer no momento da fotografia.
2. Não é só na gestão dos recursos do Ministério da Saúde que “não somos como os alemães”. O caso recente da imposição do procurador português para a Procuradoria de Justiça Europeia é outro caso paradigmático. Também nesta situação, a ministra da Justiça, enquanto responsável política pelo que acontece no ministério que tutela, não reconheceu as responsabilidades que lhe cabem em todo esse processo. A imposição de um procurador ao arrepio da escolha de um júri internacional de peritos, tendo subjacente uma adulteração do CV do candidato imposto, é situação a que a ministra não pode responder que se tratou de um lapso sem importância. Pese o facto de não se ouvir o clamor da opinião pública, bramando contra este caso, ele é deveras preocupante para ser esquecido na espuma das ondas pandémicas.
Por um lado, a imposição pelo Governo do procurador José Guerra, contra tudo e contra todos, deixa ficar a desconfortável ideia de que não se tratou de um improviso, mas de uma decisão que parece encaixar num plano organizado tendente a preencher cargos de responsabilidade com pessoas “de confiança” (o que, no caso de assuntos de Justiça, é muito grave). Pesem todas as qualidades do senhor procurador, atos como este assassinam a ideia de que a meritocracia é (deve ser) uma trave do Estado de Direito, passando-a a mero conector ortográfico em discurso de ministro(a).
Por outro, a alteração do CV do candidato cai no domínio da fraude, deixando o sinal preocupante de que ao mais alto nível dos responsáveis políticos da nação os fins justificam os meios, quaisquer que estes sejam. Não se podem aceitar tais comportamentos, que contribuem de modo profundo para a desorganização social e para o florescimento de todo o tipo de extremismos. Quando a esse nível da estrutura governativa do país se passam situações destas sem uma penalização (política e criminal), que moral existe para julgar e condenar os cidadãos que, por meios fraudulentos, procuram atingir os fins que se propõem, alguns eventualmente mais justificáveis do que o que se vem tratando?
3. Não somos como os alemães, efetivamente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico