A UE precisa de ideias para ter agora as vacinas contra a covid-19 pelas quais pagou
Os contratos que a Comissão Europeia assinou com as farmacêuticas não impediram a escassez. O litígio em tribunal também não deve funcionar. A primeira metade do ano adivinha-se difícil por falta de vacinas na Europa.
A Comissão Europeia falou alto com a AstraZeneca porque a farmacêutica disse ter problemas nas suas linhas de produção que a impedem de fornecer os 80 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 que tinha acordado fornecer aos países da União Europeia no primeiro trimestre de 2021. Mas será que as ameaças de Bruxelas, que incluem ir para tribunal, conseguirão alterar a situação? Há quem defenda a quebra de patentes pela União Europeia ou um aumento da capacidade da UE para financiar o desenvolvimento de vacinas.
“É óbvio que Comissão Europeia não vai para tribunal, porque um processo duraria anos e as pessoas precisam da vacina agora”, disse ao PÚBLICO José Gusmão, eurodeputado do Bloco de Esquerda. “A União Europeia encontra-se agora numa situação absolutamente ridícula. Os apelos e ameaças que a Comissão Europeia tem feito são completamente vazios. A UE gastou recursos consideráveis para o desenvolvimento de vacinas sobre as quais não tem nenhuma espécie de controlo”, declarou.
O problema começa com a propriedade industrial das vacinas, defende o eurodeputado. “Quando foi anunciado o grande esforço colaborativo para financiar um processo acelerado de investigação e desenvolvimento de vacinas contra a covid-19, houve vários deputados, entre os quais a Marisa Matias, a perguntar de quem seria essa vacina que iria ser paga pelos contribuintes. Era a mesma pergunta que estava na base de um apelo da Organização Mundial da Saúde que dizia que era preciso partilhar o conhecimento, a informação e a propriedade industrial das vacinas que viessem a ser desenvolvidas”, recorda.
A Comissão Europeia não tem competências na área da saúde – é algo reservado para os Estados-membros. Mas, perante a situação inédita da pandemia, a Comissão desenvolveu uma Estratégia Europeia de Vacinas, para tentar juntar esforços e capacidades – por exemplo, para adquirir material e equipamento médico e de protecção, e financiar a investigação e aquisição em bloco, para os 27 países europeus, a um preço negociado em conjunto, de vacinas contra a covid-19.
Foi isso que permitiu, entre outras coisas, a assinatura de contratos com várias empresas, como a AstraZeneca, com qual a UE está neste momento em conflito, para a pré-aquisição de 2300 milhões de doses de vacinas – de onde vêm as que estão a ser usadas agora em Portugal e nos restantes países europeus.
Mas desde o início que se ouve o pedido para que esses contratos sejam divulgados. “Para se perceber que direitos é que a UE e os seus Estados teriam sobre as vacinas que viessem a ser desenvolvidas com financiamento europeu”, explica José Gusmão.
O contrato assinado pela Comissão Europeia com a AstraZeneca, para o fornecimento de até 400 milhões de doses, acabou por ser revelado na sexta-feira, o mesmo dia em que a vacina foi certificada na UE. A parte europeia afirma que tem direito a doses produzidas no Reino Unido, ao contrário do que diz a farmacêutica, que alega problemas na sua fábrica na Bélgica e por isso apenas pode fornecer 31 milhões de doses à UE no primeiro trimestre de 2021, e não 80 milhões que estavam previstas.
O que o eurodeputado do Bloco de Esquerda viu neste contrato convenceu-o de que “houve uma captura da Comissão Europeia pelo lobby das farmacêuticas”, disse. “A União Europeia entrou num contrato absolutamente extraordinário em que pagou, mas não manda. As farmacêuticas ficam com a propriedade das vacinas e podem gerir a sua distribuição para encontrar os melhores compradores, e é a isso que estamos a assistir”, comenta.
Imitar os EUA
Anne Bucher, que dirigiu a Direcção-Geral da Saúde da UE entre Outubro e 2018 e 2019, e agora faz parte do think tank europeu Terra Nova (considerado antes próximo do PS francês e agora do Presidente Emmanuel Macron), considera que a Comissão “tem que manter como objectivo que a AstraZeneca cumpra os compromissos que assumiu para o primeiro semestre.”
Mas Bucher, que escreveu uma análise sobre a experiência da produção acelerada de vacinas contra a covid-19 e as lições que daí podem ser retiradas, reconhece que a vontade não basta, a realidade vai impor-se: “Não basta olharmos para o contrato, é preciso conhecer as capacidades reais de produção da AstraZeneca. Nunca se desenvolveram vacinas tão rapidamente e tão grande quantidade como agora. Não é de espantar que neste contexto de urgência e de excepção existam algumas dificuldades no arranque da produção, e é de esperar que a capacidade aumente com o decorrer das semanas”, disse ao PÚBLICO.
Com a rapidez com que as vacinas contra a covid-19 foram desenvolvidas – em menos de um ano, as primeiras a chegar ao mercado, quando normalmente é um processo que leva cinco a dez anos – criou-se uma espécie de ilusão de que tudo poderia ser mais fácil, diz Anne Bucher. Mas há muitas dificuldades. “Os contratos foram negociados com as empresas sem que se soubesse se elas conseguiriam de facto finalizar os projectos das vacinas, nem se sabia quando seriam autorizadas pelas agências reguladoras dos medicamentos, nem se conhecia verdadeiramente o volume da procura mundial. Por isso era muito complicado fazer uma planificação com um grande nível de certeza”, sublinha a francesa.
O que seria preciso, defende Anne Bucher, é que existisse na União Europeia uma capacidade de resposta a uma crise como a actual pandemia ao nível da dos Estados Unidos. Não está a falar da má gestão da crise de saúde pela Administração de Donald Trump, mas sim dos mecanismos que já existiam antes para financiar a investigação, desenvolvimento e produção de vacinas numa situação de pandemia ou outra emergência nacional.
Essencial para isso é a Autoridade de Investigação Avançada e Desenvolvimento em Biomedicina (BARDA), que lançou a operação Warp Speed, para a criação de parcerias público-privadas para desenvolver vacinas contra a covid-19 para 300 milhões de cidadãos norte-americanos. Enquanto a BARDA teve dez mil milhões de dólares (8,2 mil milhões de euros), logo em Fevereiro de 2020, para lançar o financiamento das primeiras vacinas, a Comissão Europeia conseguiu 2700 milhões de euros para os pré-contratos assinados com as empresas de biotecnologia e farmacêuticas que desenvolveram as vacinas.
“Esta crise demonstrou que os americanos estavam muito bem preparados. Até Abril a Comissão não tinha sequer um fundo financeiro que lhe permitisse comprar vacinas”, comentou ao PÚBLICO Anne Bucher. “A União Europeia só pode esperar corrigir estas fraquezas. Existem já propostas para isso em cima da mesa, e a presidência portuguesa da UE deverá conduzir essas negociações”, disse.
Em causa está a proposta para a criação de uma nova agência europeia com competências semelhantes à norte-americana BARDA, a Health Emergency Response Agency, HERA. “Permitiria à Europa dispor de um mecanismo de resposta a pandemias semelhante ao dos EUA”, disse, desde que fosse dotada de fundos equivalentes.
Esta é uma das iniciativas da nova estratégia para uma União Europeia da Saúde, com a qual a Comissão Europeia espera conquistar um espaço de coordenação para dar resposta a várias questões, entre as quais as crises pandémicas, avançando por entre os intervalos que lhe são deixados livres pelo facto de a saúde ser uma competência que cabe aos Estados.
Patentes e vidas
O difícil será encontrar uma solução imediata para o problema da falta de vacinas, e das condicionalidades dos contratos assinados. Que, ao contrário do que se pensava até há pouco tempo, está a começar a fazer-se sentir nos países ricos, como os da Europa, e não apenas os países mais pobres, que esperam obter vacinas através da iniciativa COVAX, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras entidades, porque não têm poder de compra para competir com os Estados Unidos, a UE, ou o Reino Unido. Estes não devem conseguir ter vacinas este ano, dizem vários alertas.
José Gusmão defende uma solução que pode ser radical, mas é repetida por muitos. “Neste momento, a única solução que vejo como possível, e que está prevista pela própria OMS é a quebra dos direitos das patentes”, afirma. “Seja a ameaça de o fazer, seja a sua concretização. Os direitos de propriedade privada não podem ser colocados acima do direito à vida de milhões de cidadãos europeus que estão a morrer todos os dias e à espera de uma vacina, com a qual a indústria farmacêutica está a fazer um negócio como talvez nunca tenha feito”, afirma o deputado do Bloco de Esquerda.
“A UE precisava de ter a patente de pelo menos uma das vacinas e colocar todos os laboratórios em território europeu, e diria eu, em todo o mundo, a produzir a vacina”, conclui. O Conselho da Europa, na semana passada, aprovou uma recomendação nesse sentido.
Anne Bucher não vai por esse caminho. Mas sublinha que foram os EUA que iniciaram primeiro a corrida às vacinas, e ao mesmo tempo fizeram contratos que impediam a solidariedade”, apesar de o mundo inteiro beneficiar da investigação científica para o desenvolvimento das vacinas. “O grande problema será a primeira metade de 2021”, reconhece.
Esta escassez de vacinas, pelo menos no primeiro semestre do ano, pode pôr em risco algumas coisas boas que se conseguiram na pandemia – como a cooperação entre os 27 para a aquisição de vacinas. “O arrastar desta situação só vai levar a que a solidariedade que se pretendia, que nenhum Estado-membro começasse a agir por sua conta, e que já tinha sido furada, comece a ser cada vez mais furada, quanto mais se tornar clara a absoluta impotência da Comissão Europeia perante as empresas farmacêuticas”, lamentou o eurodeputado José Gusmão.
Anne Bucher aconselha uma reflexão séria aos líderes europeus. “O primeiro é que os contratos a 27 são mais favoráveis do que se forem individuais. De outra forma, os países pagarão muito mais caro pelas vacinas ou terão dificuldade em aceder a elas”, diz. Precisam-se de ideias e urgentes, diz José Gusmão. “Os contratos estão assinados e a Comissão Europeia vai ter de tomar as medidas necessárias para proteger os cidadãos europeus, sob pena de os próprios Estados-membros começarem a faze-lo unilateralmente.”