Morreu Jorge Dias de Deus, o físico que gostava de ser multidisciplinar
Criou há 27 anos um centro de investigação que ligou a física de partículas à astrofísica. Esteve na génese de três licenciaturas populares no Instituto Superior Técnico. Quando havia uma lacuna num curso, “estava lá para dar aquele curso.” E, além disso, Jorge Dias de Deus preocupava-se com a cultura científica.
O físico Jorge Dias de Deus, professor catedrático jubilado do Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, morreu esta segunda-feira aos 79 anos. Estava doente há algum tempo.
Durante muitos anos, Jorge Dias de Deus presidiu ao Centro Multidisciplinar de Astrofísica (Centra), agora Centro de Astrofísica e Gravitação, de que foi fundador em 1994. Fez a sua carreira científica em física de altas energias, astrofísica, cosmologia e sistemas dinâmicos. Era conhecido como DD para amigos, diz a nota sobre a sua morte emitida pelo presidente do Centra, José Sande e Lemos, e pela vice-presidente, Ana Mourão.
“Ele vinha da física de partículas e acabou por ser o presidente do Centro Multidisciplinar de Astrofísica. Percebeu a ligação da física de partículas à astrofísica, a ligação entre o muito pequeno e o muito grande. Precisamos do muito pequeno para explicar o muito grande e precisamos do muito grande para explicar o muito pequeno”, conta-nos Ana Mourão, que foi também co-fundadora do Centra e é professora do Departamento de Física do IST.
“Embora fosse um físico de partículas, teve a grande visão de que o futuro estava em astrofísica, gravitação e cosmologia, e começou a promover um grupo, e então um centro, que poderia investigar e aprofundar estes temas. Provou que estava totalmente certo. O Centra tem agora 27 anos. A nossa área científica está a receber prémios Nobel quase todos os dois anos, o mais recente para buracos negros em 2020”, assinala ainda a nota. Em 2011, o Centra organizou uma conferência, The Multidisciplinary Universe, para comemorar os 70 anos do físico e mostrar a “sua versatilidade e multidisciplinaridade em diversas áreas”.
Nascido em Vila Fernando, concelho de Elvas, Jorge Dias de Deus começou por estudar Engenharia Química no IST, depois foi para o Imperial College de Londres e para Copenhaga, especializando-se em física de partículas. “Em 1973 em Copenhaga, desenvolveu a ideia da geometria escala, que deu uma nova visão sobre as leis de escala para os partões, ou seja, quarks e gluões, os principais constituintes dos protões e neutrões”, refere a nota de pesar. “Voltou ao IST para fazer um trabalho de primeira linha em várias direcções”, acrescenta-se, incluindo a presidência do IST. “Como professor, mostrou que era um verdadeiro físico ao proferir cursos em diversas áreas da física. Quando havia uma lacuna que ninguém conseguia preencher, o Jorge estava lá para dar aquele curso.”
Destaca-se ainda a sua participação na criação de licenciaturas hoje muito procuradas. “Esteve na génese de três licenciaturas fortíssimas do Técnico: Engenharia Física Tecnológica [em 1990], Engenharia Aeroespacial e Engenharia Biomédica. Isto mostra bem a sua versatilidade”, acrescenta Ana Mourão, que, a propósito do nome inicial do Centra, onde se incluía a palavra “multidisciplinar”, recorda um outro traço de Jorge Dias de Deus. “Gostava do multidisciplinar. Era todo multidisciplinar.”
Do convívio diário com Jorge Dias de Deus, quer no Centra quer no Departamento de Física, a que o físico também presidiu em diferentes alturas, Ana Mourão recorda os momentos em que se reuniam todos os dias para falar das actividades do centro de investigação. “Eu chegava ao Técnico e oferecia-lhe um café. E, durante o tempo em que demorávamos a beber uma bica, planeávamos o mundo.”
No entanto, antes de ser físico e professor universitário, foi dirigente estudantil durante a ditadura. Presidiu à Associação de Estudantes do IST em 1963-64. Num artigo de Luísa Tiago de Oliveira, com Marta Silva, sobre “O activismo estudantil no IST (1945-80)”, a historiadora do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ouviu o testemunho de Jorge Dias de Deus sobre a luta dos estudantes antes do 25 de Abril de 1974.
Na crise estudantil de 1962, desencadeada pela proibição das comemorações do Dia do Estudante na Universidade Clássica de Lisboa, os estudantes reagiram e ocuparam a cantina universitária, sendo reprimidos pelas forças policiais. “Nos anos seguintes, a universidade continuou a agitar-se. Os estudantes voltaram a tentar comemorar o Dia do Estudante, mas o regime não permitiu”, lê-se naquele artigo. “Em 1964, as autoridades expulsaram vários estudantes, entre os quais alguns do IST, nomeadamente o presidente da sua associação, Jorge Dias de Deus, por não acatarem a interdição governamental da celebração do Dia do Estudante”, acrescenta o artigo de Luísa Tiago de Oliveira com Marta Silva.
O gosto pela divulgação científica
Ao seu trabalho científico procurou sempre juntar a componente da cultura científica. Tem publicados vários livros de divulgação científica, todos na colecção Ciência Aberta da editora Gradiva: Galileu e a Parábola (2019); Ciência Cosmológica (2016); Einstein... Albert Einstein (2005), em co-autoria com Teresa Peña; Da Crítica da Ciência à Negação da Ciência (2003); Viagens no Espaço-Tempo (1998), e Ciência: Curiosidade e Maldição (1986).
Como exemplo do seu interesse na promoção da cultura científica, Ana Mourão menciona a participação de Jorge Dias de Deus na iniciativa 100 Horas de Astronomia, no Ano Internacional da Astronomia, em 2009. “Deu uma palestra pública à noite em Santa Cruz das Flores, o ponto mais ocidental de Portugal, com a mensagem de que é preciso ultrapassar barreiras: nós ultrapassamos as barreiras que havia e o oceano para nós é pequeno. Isso mostra bem quem ele era”, diz Ana Mourão sobre essa iniciativa da União Astronómica Internacional, que levou vários investigadores do Centra a seis das nove ilhas açorianas. “Ele alinhava em tudo e apoiava todos os projectos por mais doidos que fossem aparentemente.”
Também em 2009 esteve em São Tomé e Príncipe a participar em acções de formação numa Escola para Professores do Ensino Secundário, que antecedeu uma conferência internacional sobre os 90 anos da confirmação da teoria da relatividade de Einstein, graças à observação de um eclipse solar precisamente naquele arquipélago. “O que sabemos sobre o Universo” foi a palestra que deu nessas acções de formação.
Numa entrevista em Junho de 2000 à Gazeta de Física, revista da Sociedade Portuguesa de Física, perguntaram a Jorge Dias de Deus sobre o papel dos livros de divulgação da ciência a propósito do seu (então) recente livro Viagens no Espaço-Tempo. “Julgo que a boa divulgação – o que não é necessariamente o caso em causa – é um escape para a chatice do ensino normal. São lufadas de ar num ambiente fechado!”, considerou.
O motivo dessa entrevista era a segunda edição livro Introdução à Física, publicado pela McGraw-Hill portuguesa, e que, além de Jorge Dias de Deus, tinha Mário Pimenta, Ana Noronha, Teresa Peña e Pedro Brogueira entre os autores. “Acaba de sair uma nova edição desse best-seller que é Introdução à Física. Quais são as principais alterações e por que foram feitas?”, perguntaram-lhe. “Essa do bestseller faz-me lembrar o comentário do Mark Twain quando leu num jornal a notícia da sua morte: parece-me que é um exagero”, começou por dizer, antes de explicar as novidades dessa reedição.
Para Ana Mourão, a personalidade de Jorge Dias de Deus está bem expressa numa das cenas do livro Ciência: Curiosidade e Maldição, que é da década de 1980. É a parte em que fala de uma ceia de catedráticos, cada um a dizer qual foi a sua contribuição para a ciência portuguesa. “Mostra a crítica aos cientistas que na altura existiam em Portugal. Um deles disse: ‘Um dia gritei Eureka, Eureka!, e até isso me disseram que já tinha sido feito.’ Quando li esse texto, percebi quem era Jorge Dias de Deus.”