Bahrein: a revolta que ninguém queria ver vencer

A monarquia do pequeno arquipélago soube reprimir e controlar a revolta, usando os medos na minoria sunita, no poder, para travar a maioria, xiita. A Arábia Saudita ajudou e o resto do mundo não se opôs.

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Manifestantes diante da polícia antimotim que bloqueia a estrada até à praça da Pérola, epicentro dos protestos de 2011 Hamad I Mohammed/Reuters

Apesar de ter sido uma das primeiras revoltas de 2011 foi rapidamente esquecida pelo resto do mundo. Os protestos no Bahrein marcaram um ponto de viragem nas chamadas Primaveras Árabes: por um lado, o movimento pró-democrático no arquipélago de 1,3 milhões de habitantes (incluindo mais de 500 mil trabalhadores estrangeiros e suas famílias) foi o primeiro a sucumbir à repressão; por outro, foi ali que a onda de protestos começou a ser vista no contexto de um conflito sectário.

A única revolta de 2011 a chegar a uma monarquia do Golfo aconteceu na única onde a maioria da população é muçulmana xiita, governada por uma família da minoria sunita que conseguiu apresentar as manifestações como uma insurreição xiita. A Arábia Saudita, que se vê como principal poder sunita da região e que tende a observar o mundo à sua volta a partir da ameaça do “crescente xiita”, ajudou.

Os primeiros grandes protestos aconteceram em Fevereiro. Em Março, cerca de 1500 militares da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos chegavam ao país para ajudar na repressão.

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“O que o regime fez foi unificar o bloco sunita. Disse-lhes que se não saíssem da rua estavam a ajudar os xiitas a chegar ao poder e que quando isso acontecesse eles se iriam vingar de todos os sunitas. Resultou”, resume Joost Hiltermann, director do Programa para o Médio Oriente do think tank International Crisis Group. A família Al-Khalifa, que governa o arquipélago desde 1783 também foi “hábil na utilização da repressão”, diz o analista. “A repressão foi eficiente sem ser excessivamente violenta. Foi muito dura no início mas depois acalmou”, descreve.

“O Bahrein é uma sociedade pequena, quase toda a gente se conhece. Havia sunitas e xiitas nas manifestações, como havia comunistas, liberais, pessoas de esquerda, islamistas, académicos, médicos, artistas. Não havia diferenças, toda a gente tinha reivindicações legítimas”, recorda o activista dos direitos humanos Sayed Yousif Al-Muhafdah. “Infelizmente, eles assustaram os sunitas, disseram-lhe que se os xiitas chegassem ao poder iam perder os empregos, os benefícios.”

Muhafdah, que na altura era vice-presidente do Centro de Direitos Humanos do Bahrein, diz que o regime soube promover o medo. “Só temos um canal, a televisão do Bahrein, houve apresentadores a chorarem e a dizer que os xiitas estavam a atacar o hospital Salmaniyah, a raptar médicos sunitas… E choravam. Era tudo falso, claro”, diz.

Foi a 17 de Março, um dos piores dias da repressão, quando o hospital Salmaniyah esteve cercado por tanques e militares que não deixavam os feridos entrar nem os médicos sair.

“Imaginem o impacto, apresentadores do único canal a dizerem estas coisas. Muitos na comunidade sunita acreditaram”, afirma Muhafdah. “Mentiram porque queriam dividir para reinar e até agora pagamos as consequências disso. Muitos sunitas continuam com medo”, descreve Muhafdah, agora a viver no exílio, em Berlim, onde se mantém na direcção do Centro de Direitos Humanos do Bahrein e é vice-presidente da organização não-governamental Salam para a Democracia e os Direitos Humanos.

Para sublinhar a dimensão da ameaça, o rei disse que os xiitas eram controlados pelo Irão e passou dois anos a anunciar que tinha descoberto “células terroristas que estavam a preparar atentados”, diz Muhafdah.

Mas houve um equilíbrio entre repressão, medo e promessas. Para controlar a revolta, o rei, Hamad bin Isa Al Khalifa, também simulou mudanças e aberturas. O príncipe herdeiro, Salman bin Hamad al-Khalifa, foi usado “como um factor de mediação”, explica Hiltermann. “Os príncipes herdeiros são sempre reformistas, pelo menos até chegarem a reis. O príncipe herdeiro do Bahrein também é um reformista e foi-lhe permitido introduzir mudanças, quase todas cosméticas”, diz.

Diálogo e investigações

Ajudou que o rei anunciasse que ia iniciar um “diálogo nacional”, convidando a oposição. Organizações internacionais, como a Human Rights Watch, nunca acreditaram que produzisse resultados importantes, mas chegou para países aliados, como os Estados Unidos (que têm no país a base da sua Quinta Frota) e o Reino Unido, se pudessem mostrar confiante numa “solução para a crise”.

A formação de uma comissão de investigação aos abusos do regime na resposta aos protestos criou mais expectativas. Chefiada pelo egípcio Cherif Bassiouni, professor de Direito que trabalhou como consultor para o Departamento de Estado norte-americano e ocupou várias posições na ONU, a comissão incluía mais quatro peritos em direitos humanos reconhecidos internacionalmente e tinha por mandato investigar “os acontecimentos de Fevereiro e Março de 2011 e quaisquer consequências decorrentes desses acontecimentos”.

“Houve muita coisa que ficou de fora, mas também se incluíram muitas críticas. Em geral, o relatório era bom, franco. Claro que antes tinham trazido as tropas sauditas”, nota o analista do Crisis Group, que segue de perto a política da pequena monarquia.

Hiltermann nota ainda que o regime soube “seleccionar muito bem quem tinha de manter na cadeia, como Ali Salman, líder do Partido Wefaq [ilegalizado em 2011, era desde 2006 o maior partido no Parlamento], alguns comunistas, xiitas seculares”, enumera. O suficiente para “manter a situação controlada por uns 20 anos”, diz o analista, lembrando que o país tinha assistido a uma revolta em 1994.

Dúvidas e resignação

Muhafdah garante que a situação nunca esteve pior. “O Governo controla tudo. Por exemplo, com a nova lei das redes sociais, quando um jornalista escreve qualquer coisa crítica não demora duas horas até ser interrogado. Não estou a exagerar, é o Departamento de Crimes Electrónicos do Ministério do Interior, são muito activos. Só não se ocupam do discurso de ódio contra os opositores ou os xiitas, para esse até há espaço nos jornais, na televisão”, diz. “Desde o ano passado nem os deputados são autorizados a criticar o Governo”, acrescenta.

Apesar do “estado policial cada vez mais eficiente”, vai havendo protestos, “quando alguém é executado ou quando acontece alguma coisa polémica, como o acordo de paz entre o Bahrein e Israel, acontece umas três vezes por ano e são algumas dezenas de pessoas”, relata Muhafdah. Hoje, diz, já não existe “um verdadeiro movimento de contestação”. E Muhafdah, que contacta regularmente com muitas pessoas no seu país, receia que se instale um “sentimento de resignação” que às vezes diz perceber nos jovens.

“Muitas pessoas, mesmo não estando felizes, convenceram-se que vai ser sempre assim. É assim que as coisas são, somos uma ilha do Golfo apoiada por monarquias absolutas da região e nem os EUA ou o Reino Unido querem que a situação mude”, descreve. “Muitos jovens que falam comigo estão convencidos que eles não querem ver os xiitas a governar, que do ponto vista económico e estratégico preferem que tudo fique como está.”

A Arábia Saudita não vai tolerar um Bahrein democrático, como mostrou há dez anos. “Foi uma mensagem muito clara. A democracia não vai ser permitida, não pensem em tentar isto de novo”, recorda Muhafdah. Os EUA querem a Arábia Saudita feliz, afirma. E “gostam das coisas como estão, a família no poder compra-lhes armas, permite a presença militar, eles não sabem se com um governo diferente, xiita, teriam as mesmas facilidades”. Segundo Muhafdah, “muitos jovens fazem esta análise” e nem todos acreditam que “valha a pena tentar”.

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