Vacinar pessoas sem prioridade é crime? Procuradora-geral da República mantém silêncio
Directora do Centro Distrital da Segurança Social demitiu-se. Há quem defenda que mandar vacinar aqueles cuja vez ainda não chegou é criminoso, mas procuradora-geral da República mantém-se em silêncio.
A directora do centro distrital da Segurança Social de Setúbal, a militante socialista Natividade Coelho, é a primeira baixa na polémica relacionada com alegadas fraudes no processo de vacinação contra o coronavírus. Demitiu-se depois de terem recaído sobre ela suspeitas de ter mandado vacinar 126 funcionários da Segurança Social antes do tempo, incluindo ela própria.
Este tipo de acusações têm vindo a avolumar-se nos últimos dias, mas não se circunscrevem a Portugal. Na Áustria, por exemplo, descobriu-se que vários presidentes de câmara conseguiram ser inoculados mesmo não integrando os grupos prioritários. Alguns familiares de cuidadores de idosos e funcionários municipais também foram beneficiados. Tal como cá, alegaram em sua defesa que usaram sobras que era preciso aproveitar, uma vez que após a descongelação este medicamento tem de ser administrado no prazo máximo de 120 horas. Em Espanha o mesmo tipo de desconfianças gerou demissões.
Em território nacional as suspeitas levaram o Ministério da Saúde a anunciar a realização de auditorias para tentar evitar os abusos. O coordenador do grupo de trabalho responsável pela execução do plano nacional de vacinação, Francisco Ramos, defende não haver necessidade de ir mais além, alterando, por exemplo, algumas disposições do plano para o tornar menos permeável à fraude. “O sistema foi montado para vacinar pessoas. Não para perseguir aqueles que fazem batota”, insiste este economista de saúde, que não entende por que razão estes casos, que minam a confiança dos utentes, estão a ter tanta visibilidade apesar de serem uma minoria.
A cargo da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, uma das auditorias deverá incidir sobre o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), que já veio negar acusações da Associação Nacional de Emergência e Protecção Civil segundo as quais vacinou profissionais não prioritários. Outro caso recente diz respeito ao Centro de Apoio a Idosos de Portimão, cujos dirigentes entendem que o plano lhes dá direito a beneficiarem de prioridade, por terem “contacto directo e activo com os idosos, e com as instalações que os mesmos frequentam e utilizam”. Porém, a vacina foi ainda ministrada aos funcionários administrativos, bem como aos membros do conselho fiscal.
O secretário de Estado da Descentralização e Administração Local, Jorge Botelho, garante que a lei é clara, pelo que qualquer desvio aos critérios de prioridade tem de ser esclarecido, eventualmente através de um inquérito.
Mas mesmo partindo do pressuposto de que essa clareza é cristalina, o Ministério da Saúde já admitiu que a sua capacidade de controlo do cumprimento da lei é reduzida. Em declarações ao Observador reconheceu que, em regra, apenas tem acesso ao número de pessoas a vacinar, pelo que não pode validar se determinada pessoa trabalha ou reside na instituição que pediu as vacinas, nem que funções aí desempenha. Essa identificação “é da responsabilidade de quem sinalizou a entidade e o universo de pessoas a vacinar”, isto é, os próprios lares.
Ao PÚBLICO, este ministério disse que repudia qualquer eventual abuso, recordando que, em situações absolutamente excepcionais e no caso de por circunstâncias imprevistas não serem possíveis de administrar todas as doses previstas para um determinado estabelecimento, face às condições limitadas de conservação da vacina e com o intuito de evitar a inutilização de doses, “poderão vir a ser administradas doses a pessoas não previstas inicialmente”.
Questionada sobre se irá mandar investigar o eventual cometimento de crimes por parte de quem abusou do sistema, a procuradora-geral da República tem-se mantido em silêncio. E entre os juristas as opiniões dividem-se. Há quem ache não haver indícios de comportamento criminoso, por muito que este tipo de actuação possa configurar algum tipo de irregularidade. É o caso do penalista Rui Patrício e é também para aí que se inclina o advogado Magalhães e Silva.
E deve ser dada a 2.ª dose?
Já o advogado Melo Alves e o antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira entendem que se justifica a abertura de processos-crime para apurar responsabilidades. Podem ter sido cometidas burlas ou até, no caso do envolvimento de funcionários públicos e equiparados, crimes como o peculato. Rui Pereira diz que, no limite, se poderia falar em homicídio por negligência, caso se provasse que alguém morreu por a sua vacina ter sido desviada para outra pessoa.
E deve ser ministrada a segunda dose às pessoas que foram inoculadas indevidamente? “Sem dúvida, senão estar-se-ia a desperdiçar vacinas”, responde Magalhães e Silva. “Se a obtiveram de forma ilícita não têm direito à segunda dose. Era o que faltava!”, contrapõe Melo Alves.
Mas também existe quem ache que todos os responsáveis destas instituições solidariedade social devem ter direito à vacina, como o director do Centro de Direito Biomédico, André Dias Pereira. “Gerou-se uma caça às bruxas”, critica. “Acho isto vergonhoso. Deixem em paz os provedores das misericórdias, que ganham zero por mês.”