Um riso em tom de gozo fez arguido disparar cinco tiros contra Bruno Candé
Evaristo Marinho foi ouvido pela PJ e confessou o crime. Advogada acredita que arguido, aos 76 anos, “em termos práticos, tem o fim da sua vida determinado”. Família diz que o facto de ir ser julgado “acalma os corações”. Vai pedir indemnização civil.
Aconteceu em plena da luz do dia numa rua com comércio movimentada, pelo menos três testemunhas viram os disparos mas até ao fim do julgamento mantém-se a presunção de inocência do arguido. Mesmo assim, a condenação de Evaristo Marinho pelo homicídio do actor Bruno Candé a 25 de Julho do ano passado, é quase certa porque à Polícia Judiciária, e depois ao Ministério Público (MP), o ex-combatente na guerra colonial em Angola assumiu ter sido ele o autor do crime. Evaristo Marinho chegou a contar o que o fez carregar no gatilho e dar cinco disparos: um riso em tom de gozo de Bruno Candé, dias depois de uma discussão entre ambos, presenciada por quatro pessoas, segundo a PJ.
O crime de homicídio qualificado por ódio racial tem uma moldura penal que vai de entre 12 e 25 anos, segundo o Código Penal. O motivo do homicídio foi uma discussão por causa da cadela do actor, diz o MP, que considerou que o crime foi “determinado por ódio racial”, agravado por ter sido cometido com arma (assim, os limites mínimo e máximos da pena podem ser agravados em um terço).
Alexandra Bordalo Gonçalves, presidente do conselho de deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados e advogada oficiosa de Evaristo Marinho, acredita que o arguido deverá manter as declarações, assumir a autoria do crime e negar a motivação de ódio racial já que tem sido consistente nos seus depoimentos. De qualquer forma, se foi ou não racismo isso não terá influência na medida da pena, acredita. O resultado é que “em termos práticos, [Evaristo Marinho] tem o fim da sua vida determinado [na cadeia]”, afirma. “Tem 76 anos…”.
Quando falou à Polícia Judiciária sobre a motivação Evaristo Marinho afastou a hipótese de ter sido racismo, mas reproduziu palavras que disse a Bruno Candé durante uma discussão, como “a puta da tua mãe, está numa senzala!” — senzala era a zona onde ficavam as pessoas escravizadas, no Brasil, ou, se for sanzala em Angola significa aldeia.
A versão do arguido — que consta no processo que o PÚBLICO consultou — é que Bruno Candé o insultou por causa da cadela, e que o chegou a enfrentar fisicamente dizendo que “lhe arrancava as entranhas”.
Mas o antigo auxiliar de acção médica, a quem a mulher nunca conheceu amigos de levar a casa, negou outras expressões testemunhadas por várias pessoas três dias antes, e reproduzidas à PJ, como “preto de merda”, “tenho lá armas em casa do Ultramar e vou-te matar”.
À PJ o arguido disse que foi depois da discussão que se “lembrou” de que tinha uma arma em casa — na mala onde a guardava estavam 25 balas e a investigação descobriu que a arma pertencia à PSP. No dia em que disparou contra Bruno Candé colocou-a à cintura para “se defender de uma eventual agressão”.
Saiu de casa depois de almoço, e quando chegou à Avenida de Moscavide viu Bruno Candé sentado no banco. Descreveu os momentos antes do disparo: o actor começou “a rir-se, em tom de gozo” para ele. Então, sem que nada mais acontecesse, nem qualquer troca de palavras registadas, Evaristo Marinho não conseguiu “controlar-se”, sacou da arma, “introduziu a munição na câmara puxando a culatra atrás e disparou vários tiros”, contou o próprio à PJ.
Quando disparou o primeiro tiro Bruno Candé “estava sentado”. O Ministério Público disse que os outros quatro disparos foram dados já com o actor no chão, prostrado. Uma testemunha ouviu Evaristo Marinho dizer depois do acto: “Já está.” Depois, “seguiu calmamente pela avenida”. Foi “abordado por três indivíduos”, que o conduziram “ao chão” e retiraram a arma e o “cinto onde tinha o coldre”.
O que motivou o homicídio?, perguntou-lhe a PJ. Os insultos e o “confronto”, referiu. Apesar de ter estado em Angola, na guerra, entre 1966 e 1968, acha que isso “em nada modificou a percepção relativamente aos indivíduos de raça negra, por quem tem respeito”, lê-se no processo. Negou ser racista e ter agido com base em ódio racial.
Pegando nos depoimentos à investigação, e fazendo a sequência dos acontecimentos, conclui-se que o conflito terá começado pelo menos um mês antes. Isso di-lo uma testemunha que trabalha na loja em frente ao local dos acontecimentos e conhecia o actor de o ver sentar-se diariamente no banco.
Lembrou-o como uma pessoa “educada e afável” e relatou, dessa altura, uma discussão entre os dois: Evaristo Marinho enxotava a cadela de Bruno Candé com a bengala, levantava-a para bater no actor e gritava: “Vai para a tua terra preto”, “tens toda a família na senzala e devias também lá estar”. Bruno Candé respondia com palavrões.
Também três dias antes do homicídio mais testemunhas relataram discussões. Um homem disse ter ouvido Evaristo Marinho dizer a Bruno Candé: “Eu lá violei a tua mãe” e o actor a responder em tom jocoso “e o meu pai?”. Os ânimos aqueceram, contou, até o actor afirmar que “só não lhe batia porque era velho”. Neste dia, quando Bruno Candé se ia embora, esta testemunha ouviu Evaristo gritar: “Tenho lá armas em casa do Ultramar e vou-te matar.”
Outro homem que ia à ourivesaria e acabou a intermediar a discussão entre os dois também ouviu Evaristo Marinho dizer várias vezes: “Preto de merda” e “eu mato-te”. Quanto ao actor, limitava-se “a empurrar o indivíduo mais velho”, quando ele “avançava para si com a bengala na mão para o agredir”, relatou este homem que chegou mesmo a tentar acalmar Evaristo Marinho.
Ser julgado “acalma os nossos corações”, diz família
A família, que desde o início invocou a motivação racial do crime, diz estar “inteiramente de acordo com o teor da acusação”. Olga Araújo, irmã mais velha de Bruno Candé, diz ao PÚBLICO que acredita que “este é um primeiro passo para que seja feita justiça”. Ao telefone a partir de Londres, onde vive, diz: “Nenhum ser humano deve morrer pela cor da pele, ou por ser diferente. Ninguém merece. Ele [Evaristo Marinho] estar sentado no banco dos réus e ser julgado por isso acalma os nossos corações.”
Seis meses depois da morte do irmão, confessa que têm sido tempos difíceis. O pai, que estava doente na altura, entretanto morreu. “Espero que o julgamento seja rápido. O Candé faz muita falta. Era muito importante na família. Deixou um espaço vazio muito grande.”
Bruno Candé, que tinha 39 anos, deixou três filhos menores: uma rapariga, de três anos, e dois rapazes, um com cinco e outro com seis anos. O pedido de indemnização civil ao arguido será feito por dois advogados, que representam diferentes filhos. Manuel Dória Vilar representa a filha de três anos e disse ao PÚBLICO que deverá balizar o valor entre 80 e 100 mil euros. José Semedo Fernandes, um dos advogados que representa os dois filhos, também vai fazer pedido de indemnização, mas ainda não definiu valores.