Não, não é o fim do princípio

Era um absurdo de saúde pública adiar a vacinação dos maiores de 80 para as calendas gregas. Uma decisão que vai salvar muitas vidas certamente – mas que também não se percebe por que não foi tomada mais cedo.

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LUSA/MANUEL DE ALMEIDA
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Portugal é hoje o país da Europa com mais mortos e novos casos de covid-19 por milhão de habitantes. Mais de 300 mortos num dia só fazem-nos lembrar as imagens de Itália, Espanha e Reino Unido da primeira vaga, quando Portugal morria de medo, apesar dos números de casos em território nacional terem permitido a posteriori alardear o sucesso do “milagre português”. Hoje isso não acontece, o que faz o Presidente – e bem – alertar para o risco da “insensibilidade” que uma prolongada exposição à tragédia pode suscitar. Essa dita “insensibilidade” acaba por ser humana: sem querer fazer comparações esdrúxulas de pandemia com guerras, o biógrafo de Clement Attlee conta que muitas vezes o adjunto de Churchill no Governo 1940-45 “se esquecia” de ouvir a sirene que mandava Downing Street para os abrigos e continuava tranquilamente a trabalhar – mas Attlee não se portou assim durante o tempo todo e passou bastantes dias debaixo de terra. Agatha Christie, que já tinha vivido a I Guerra, decidiu que não iria mesmo para os abrigos e durante todo o Blitz dormiu na sua cama. Teve sorte: uma bomba arrasou o abrigo da sua área.

Para combater a insensibilidade da população perante o vírus e fazer o que estiver ao alcance de um Governo para conter a pandemia, é preciso um bocadinho mais do que condenar a oposição ao silêncio, como parece querer a ministra Marta Temido, que, por estes dias – eventualmente, por esgotamento pessoal –, se mostra incapaz de ouvir uma crítica. Felizmente que o regime não é de partido único, a União Nacional acabou quase há 50 anos e se Boris Johnson, Donald Trump, Jair Bolsonaro e outros foram bastante contestados pelas respectivas oposições pela forma como enfrentaram a pandemia, naturalmente que António Costa e Marta Temido o podem e devem ser. Até porque quem há semana e meia achava que o ensino devia continuar a ser presencial para, dois dias depois, mudar de opinião não demonstra grande clareza de rumo. E lembremo-nos de que o Governo também decidiu ser poupadinho – gastou menos do que previa no combate à covid-19.

As medidas anunciadas esta quinta-feira fazem, finalmente, sentido. Facilitar a inclusão no SNS de médicos estrangeiros residentes em Portugal e que dele têm sido excluídos, apesar de qualificados, é uma boa medida que vai ajudar um depauperado Serviço Nacional de Saúde. Fechar as fronteiras quando a estirpe inglesa já se espalha em grande escala em Portugal é outra  medida essencial.

O Governo também fez bem em antecipar a vacinação dos maiores de 80 anos que não têm doenças e que tinha sido atirada para depois de Abril. Se o maior risco de mortalidade se situa nessa faixa etária, era um absurdo de saúde pública adiar a vacinação dos maiores de 80 para as calendas gregas. Uma decisão que vai salvar muitas vidas certamente – mas que também não se percebe por que não foi tomada mais cedo.

Os dias vão continuar a ser negros, a escola à distância potencia as desigualdades, o confinamento das famílias (e também das pessoas que vivem sós) é um risco para a saúde mental. Mas o momento é de verdadeira emergência nacional. Se não se trava a escalada em curso, a tragédia pode ser inimaginável.

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