Os novos mártires da Pátria
Um deputado que diz não querer a vacina está apenas a dizer que o seu papel na vida pública é despiciendo, que o seu trabalho é substituível, que fiscalizar o Governo ou aprovar uma lei é equivalente a uma operação STOP.
Um dos piores defeitos de certos políticos é dizerem apenas aquilo que o seu eleitorado quer que digam. Coisas do tipo: “Não se devem vacinar os políticos antes de todos os idosos.” Frases como: “Antes de se vacinar os políticos têm de se vacinar os bombeiros.” Com tanto altruísmo, garantem uma enxurrada de likes nas redes sociais, mas banalizam o papel e o estatuto que lhes foi outorgado pela vontade dos cidadãos expressa em eleições. Os deputados que recusam a vacina lá receberão aplauso de uma cada vez mais vasta franja da população empenhada em dizer mal da política; mas conseguem-no à custa do deslustrar do seu estatuto e da degradação da sua missão, que não consideram ser assim tão importante para ser protegida contra os efeitos da pandemia.
Não é de estranhar que perante um bem escasso, as vacinas, para travar um mal que não parece capaz de ser travado, a covid-19, se discuta quem deve estar nos primeiros lugares da fila da vacinação. Estranha-se a desumanidade de não dar prioridade aos portugueses com mais de 80 anos. Estranha-se que os funcionários da Assembleia entrem nessa condição. Estranha-se que por razões perversas haja chicos-espertos nas misericórdias a usar privilégios para terem aquilo a que não têm direito. Como se estranha que haja deputados a recusar a vacina, sabendo que estão no lugar onde se fazem as leis indispensáveis não só para penalizar esses provedores videirinhos, mas também para determinar soluções para a crise sanitária. Um deputado que diz não querer a vacina está apenas a dizer que o seu papel na vida pública é despiciendo, que o seu trabalho é substituível, que fiscalizar o Governo ou aprovar uma lei é equivalente a uma operação STOP.
Não é popular nos dias que correm defender o estatuto dos políticos, o papel que lhes cabe como principais responsáveis pela condução dos destinos de um país aflito, a importância de se manterem activos para que o seu trabalho não seja afectado pelas vicissitudes da pandemia. A própria classe política demorou dois meses a concluir que o Presidente, o primeiro-ministro, a ministra da Saúde ou um presidente de câmara ou um deputado são hoje pessoas ainda mais importantes para gerirem o nosso destino comum. Mas depois de dar um salto no populismo e aceitar que devem estar na linha da frente das prioridades da vacina, lá aparecem uns candidatos com súplicas de mártir a admitir a sua insignificância para merecerem tal distinção.
O populismo, sempre a salivar pela degradação da democracia, agradece; quem acha que a representação política é um estatuto de superior dignidade e importância, logo merecedor de especiais protecções, não.