A homofobia na dádiva de sangue em Portugal não é um tema novo. Mas importa abordá-lo as vezes que forem necessárias até alguma coisa mudar de facto, em particular num momento como o que atravessamos, em que são necessárias doações de sangue para suprir a carência nas reservas, como atesta o apelo à doação da Federação Portuguesa de Dadores Benévolos de Sangue (Fepodabes).
Apesar de a norma de orientação clínica da Direcção-Geral da Saúde (DGS) ter posto fim, em 2016, à proibição da dádiva de sangue por homens homossexuais e bissexuais, continua a existir uma postura discriminatória em relação a essa população, havendo uma imposição de abstinência sexual de 12 meses para ser permitida a doação de sangue, resultado da interpretação da norma da DGS por parte de alguns profissionais de saúde. A questão da orientação sexual não está explícita na lei. O que está clarificado é, apenas, a impossibilidade de doar sangue por seis meses em caso de ter havido mudança de parceiro sexual, independentemente da orientação sexual. Mas as autoridades de saúde continuam a tratar a população de homens homossexuais e bissexuais de forma diferenciada, pela interpretação que fazem da norma da DGS, defendendo que são um grupo com comportamentos de risco, estando por isso mais vulneráveis do que a restante população a infecções sexualmente transmissíveis.
Analisando, por exemplo, os níveis de transmissão de VIH em Portugal, verifica-se que são superiores entre a população heterossexual (57,8%), como refere o relatório do Programa Nacional para a Infecção VIH/sida de 2020, da DGS e do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Ora, face a estes dados, porquê insistir na ideia preconceituosa de que as práticas sexuais de homens homossexuais e bissexuais são, per se, comportamentos sexuais de risco? Porquê manter o tratamento discriminatório a um grupo específico da sociedade em vez de se avaliar a elegibilidade de cada uma das submissões para doação de sangue em função das suas particularidades?
Em Fevereiro de 2020, o Expresso avançava que a ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo continuava a receber denúncias de homens homossexuais e bissexuais que se vêem impedidos de doar sangue pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), mesmo sem terem os comportamentos de risco definidos pela DGS – entenda-se, estando em abstinência sexual há pelo menos 12 meses. Nos últimos dias, chegaram às redes sociais denúncias de homens que também se viram impedidos pelo IPST de doar sangue quando decidiram juntar-se às centenas de pessoas que responderam ao recente apelo à doação da Fepodabes, difundidas pelo Dezanove e pela ILGA Portugal. A exclusão deveu-se, dizem, à orientação sexual. Não é isto homofobia?
O IPST tem um histórico de homofobia por demais conhecido. Exemplo disso são as declarações de Hélder Trindade, ex-presidente do IPST, na Comissão de Saúde da Assembleia da República, em 2015, onde defendeu que homens homossexuais e bissexuais sexualmente activos deviam ser excluídos da dádiva de sangue. Apesar da nova norma de orientação clínica da DGS de 2016, parece que o IPST ainda não superou a postura discriminatória do seu antigo presidente. Somam-se as denúncias sobre a atitude excludente perpetuada por profissionais de saúde daquele instituto, desde os que afirmam categoricamente aos dadores que, se são homens que têm sexo com homens, nunca mais poderão voltar a doar sangue (pelo menos em Lisboa), aos que eliminam pessoas de forma arbitrária do sistema de dadores do IPST com base na orientação sexual, numa clara violação ao Princípio da Igualdade salvaguardado pela Constituição da República Portuguesa.
Compreende-se que tanto a DGS como o IPST queiram assegurar a qualidade do sangue recolhido nas dádivas e contra isso nada tenho a opor, é a sua obrigação. A DGS compromete-se, e bem, a garantir que “todas as unidades de sangue colhidas são, conforme a lei obriga, submetidas ao rastreio de doenças infecciosas potencialmente transmissíveis pela transfusão de sangue (hepatite B, hepatite C, sífilis e vírus da imunodeficiência humana)”. Se este procedimento é aplicado a todas as unidades de sangue colhidas, qual a razão de ainda prevalecer uma postura discriminatória que impede ou limita a doação em função da orientação sexual de alguns dadores?
Tal questão torna-se ainda mais premente face à pandemia que enfrentamos e à quebra que se verifica nas reservas, havendo necessidade de mais dadores. Ou o sangue de um homossexual ou bissexual não pode salvar vidas?
Recupero o artigo Sangue, gays e discriminação: uma exclusão inaceitável, de Romeu Monteiro, publicado no P3 em 2015, que a propósito da já “extinta” proibição da doação de sangue por homens homossexuais e bissexuais referia que, “se a solução segura fosse a exclusão dos grupos que apresentam maior risco de doar sangue contaminado, então deveríamos excluir pessoas segundo o seu género, etnia, nível de escolaridade, meio económico e eventualmente até o bairro onde vivem”. Parece absurdo. Porque o é, de facto. Tal como é absurda a discriminação por base na orientação sexual que ainda prevalece, suportada por uma norma da DGS pouco clara. A isso damos um nome: homofobia. Da mais institucionalizada e silenciosa. E é nosso dever repudiá-la, ainda que venha camuflada com as melhores intenções.