Desafios e dilemas nas relações durante o confinamento
Quase um ano depois do início do “terramoto” pandémico e perante um novo recolhimento obrigatório, olhamos para a diversidade de experiências do primeiro confinamento — de Março a Maio 2020 — e para os desafios na gestão das relações próximas, dentro e fora do agregado doméstico. Vivências diferentes partilham um dilema comum: living apart together ou living together apart?
Manuel António Pina deu o título ao poema, sem saber que tão bem se aplicaria ao que vivemos em 2020: O ano em que o calendário avariou. O mundo como o conhecíamos ficou em pausa e mergulhámos num cenário distópico. Março ia na terceira semana. Os estabelecimentos de ensino fecharam. O primeiro estado de emergência nacional foi decretado. O recolhimento domiciliário foi imposto. A circulação entre fronteiras foi limitada. A mobilidade no espaço público restringida. Empresas públicas e privadas pararam. As visitas aos lares e hospitais suspensas. Os estabelecimentos comerciais e serviços não-essenciais encerraram. Nas prateleiras dos supermercados esgotaram-se stocks de álcool, máscaras, papel higiénico e enlatados.
Palavras como “vírus", “pandemia”, “corona”, “covid”, “quarentena”, “confinamento”, “risco”, “incerteza”, “angústia”, “medo”, “insegurança”, “crise”, “máscara" e “álcool-gel” começaram a povoar o léxico nas conversas, redes sociais, media.
Na esfera pública proliferaram debates e intervenções de peritos e decisores políticos centrados, sobretudo, em questões de saúde pública, políticas e medidas legais de contenção da pandemia, impactos económicos a curto e longo prazo. Os estudos epidemiológicos dispararam. Mas faltavam estudos sobre as respostas dos indivíduos e das famílias à pandemia. Que impactos se faziam sentir nas diversas esferas da vida social? De forma a responder a essa lacuna, uma equipa multidisciplinar de dez investigadores (antropólogos, geógrafos, cientistas políticos, psicólogos sociais e sociólogos do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Instituto Universitário de Lisboa) desenvolveu o estudo O Impacto Social da Pandemia.
Os dados foram recolhidos através de um inquérito online (no final de Março), em que participaram 11.500 residentes em Portugal, maiores de 16 anos. Como é que as pessoas reorganizaram os seus modos de vida e as suas relações próximas face à pandemia? De que modo vivenciaram o recolhimento domiciliário? Que efeitos sociais e psicológicos sentiram nos quotidianos pessoais e familiares?
Quase um ano depois do “terramoto” pandémico, enfrentamos hoje um novo recolhimento obrigatório. Com base nos testemunhos de Março de 2020, proponho-me refletir sobre as experiências de confinamento das famílias e a gestão complexa das relações próximas. Apesar de o cenário epidémico, económico e social do atual confinamento ser diferente, é relevante analisar essas vivências para antever e melhor compreender os desafios que se colocam aos indivíduos e às famílias neste momento.
A paisagem de confinamento esteve longe de ser homogénea, quer pela diversidade da composição dos agregados domésticos de recolhimento, quer pelas histórias de vida e os contextos sociais diferenciados em que as pessoas se inserem, associados ao género, à idade, à classe social, ao sector de atividade, à orientação sexual, à etnia ou à região geográfica. Apesar da transversalidade das preocupações e das dificuldades, assistimos a diferentes experiências de confinamento e respostas sociais à pandemia pautadas por desafios e vulnerabilidades particulares.
Casais “hetero” com filhos/as
Os agregados constituídos por casais heterossexuais com filhos/as (40%) representaram a estrutura familiar de confinamento mais comum. Tal não surpreende, quer pela sua prevalência demográfica, quer pelo seu peso cultural e institucional. Aliás, é neste ideal de casal “hetero” com filhas/os a viver na mesma casa que se baseiam a maioria das políticas públicas de gestão da pandemia.
As dificuldades sentidas por estas famílias, em especial nos casais com crianças e jovens, têm merecido especial destaque mediático, recaindo sobretudo nos desafios da articulação trabalho/família. Se esta acumulação de tarefas acentuou as desigualdades de género em alguns casais, sobrecarregando as mulheres trabalhadoras, é também verdade que o confinamento tornou visível a partilha igualitária que existe na divisão dos cuidados e do trabalho doméstico entre outros casais.
Os jovens em recolhimento domiciliário obrigatório com pais e irmãs/ãos constituíram o grupo de inquiridos que manifestou maior dificuldade a lidar com normas de distanciamento social e uma especial impaciência face à duração do confinamento e das restrições. Entre as razões para as suas inquietações, destaca-se a angústia pela privação das sociabilidades com amigos/as e dos momentos de convívio, exercício e lazer fora de casa. Acresce-lhes a incerteza pelos projetos escolares e profissionais. E a sensação de perda das experiências “inaugurais” da adolescência e transição para a vida adulta. Mas também o stress causado pela falta de autonomia e pelo convívio intenso, de 24h por dia, com familiares.
Famílias em trânsito
Enquanto algumas pessoas viviam já num agregado monoparental antes da pandemia, outras depararam com situações que obrigaram a uma mudança de residência habitual para esse tipo de agregado. Filhas/os adultos que viviam sozinhas/os antes do confinamento e passaram a residir com um dos progenitores, para poder prestar ou receber cuidados. Pessoas que regressaram a casa do pai ou da mãe porque perderam a independência financeira e a possibilidade de sustentar uma residência autónoma. Nos casos de filhas/os de pais separados, enquanto uns permaneceram em regime de residência alternada, outros, por proteção, optaram por ficar apenas na casa de um dos progenitores.
Também as famílias transnacionais, apesar de terem mais experiência em manterem os laços vivos à distância e uma bagagem de estratégias para lidar com a ausência do contacto físico, depararam com novas demandas no contexto pandémico. A forma como os diferentes países geriram a mobilidade entre fronteiras (obrigatoriedade de quarentena após a estada em certos territórios ou a impossibilidade de viajar) representou enormes exigências na reinvenção das práticas do cuidar a longa distância e precipitou a reajustamento dos projetos individuais e familiares de migração. Também aqui as experiências das vidas transnacionais em confinamento são moldadas pelas desigualdades sociais associadas à nacionalidade, ao estatuto de migrante, aos recursos, às condições de saúde, mas também ao acesso às tecnologias de informação e comunicação.
Intimidades e sexualidades
Com o contacto corporal desencorajado, as incertezas em relação às formas de propagação do vírus e o stress gerado por todo o contexto de crise, a pandemia e o confinamento também afetaram fortemente as vivências da intimidade e da sexualidade.
A par de modelos mais normativos dos percursos amorosos e sexuais, tendo como referência um ideal de relação monogâmica, heterossexual e de longa duração, coexistem formatos relacionais diversos e fluidos que atravessam a identidade de género, a sexualidade, a geografia e até as fronteiras do online/offline. Toda essa paisagem relacional se traduziu em desafios múltiplos. Mais: o confinamento apanhou as pessoas em fases e transições distintas dos seus percursos amorosos e sexuais.
Nos casais LAT (living-apart-together), em que os parceiros estavam numa relação conjugal, mas a viver em casas separadas e até localidades diferentes, o confinamento precipitou uma coabitação que não fazia parte dos planos. O formato inverso LTA (living-together-apart), formado por ex-parceiras/os que vivem na mesma casa, mas que já não têm uma relação conjugal, também ocorreu. São disso exemplo os casais divorciados ou em vias de separação que voltaram a viver juntos, por razões económicas ou até como forma de proteger os filhos em comum. Pessoas com diversos parceiros sentiram-se mais constrangidas nas suas práticas amorosas e sexuais, quer pelo desencorajamento do contacto social, quer pelos sentimentos de insegurança e desconfiança face aos riscos.
No entanto, vale a pena acrescentar que outros estudos científicos indiciaram que, a par de um decréscimo na frequência da atividade sexual, se assistiu também a uma reinvenção das práticas sexuais e íntimas. Explorando novas fantasias, através do uso de aplicações de dating, no consumo de pornografia, na troca de mensagens de cariz erótico (sexting) ou utilização de brinquedos sexuais.
Confinamento a solo
O confinamento foi também vivido a solo por 12% dos inquiridos, alguns destes na companhia de animais. Para as pessoas que já viviam sozinhas, o confinamento pode não ter constituído uma ruptura drástica do quotidiano. Para quem foi obrigado a viver a sós (por exemplo, para proteger os outros ou a si próprio do vírus), a transição foi abrupta. As pessoas pertencentes aos grupos de risco foram um grupo especialmente vulnerável. Se, por um lado, encontrámos relatos de solidão e ansiedade decorrentes da privação dos afetos, do contacto corporal e do convívio social, por outro, também nos deparámos com relatos de resiliência e até de um certo alívio por não terem de conviver 24 horas por dia na companhia de outras pessoas, e pela ausência de risco de contaminação de outros dentro de casa.
Confinar com amigos/as
As fronteiras entre família e amigos/as são cada vez mais difusas e os significados que as pessoas atribuem aos laços de amizade são múltiplos e vão variando ao longo da vida. Esta centralidade da amizade na vida pessoal foi também visível durante a pandemia. Muitas pessoas, principalmente as mais jovens, se queixaram da angústia sentida pelo afastamento físico de amigos/as. Outras dependeram destas/es em termos de apoio emocional e material (por exemplo, para desabafar ou ir às compras). E outras ainda vivenciaram a própria experiência de confinamento com amigos/as. Este tipo de agregado durante o confinamento (minoritário na amostra) revelou uma outra dimensão importante. Apesar de a amizade nos remeter para a questão da confiança, não foram raras as experiências de controlo social entre amigos/as, gerando alguma tensão. Não sendo exclusivo deste tipo de agregados, a escolha de com quem manter contacto ou em quem confiar pareceu traduzir-se também num certo “policiamento” dos comportamentos de risco entre amigos, especialmente naquelas redes de amizade em que há uma maior densidade de contactos e entreajuda.
Humanos e animais de companhia
A diluição dos limites das configurações familiares e pessoais tem ocorrido também por via do reconhecimento dos laços afetivos estabelecidos com os animais de companhia. Muitas pessoas consideram-nos os seus melhores amigos ou parte integrante da família, naquilo que se designa por famílias multiespécie. No estudo O Impacto Social da Pandemia, cerca de metade dos inquiridos estava a viver com, pelo menos, um animal de companhia durante o confinamento. Mais: foram muitos aqueles que, coabitando com animais de companhia, os referiram espontaneamente quando lhes perguntámos: “Com quem está a viver nesta fase de recolhimento familiar?” Se com as normas de distanciamento social foi imposta uma contenção dos corpos e dos afetos entre humanos, tal desencorajamento não se aplicou à interação com os animais de companhia.
Redefinindo o conceito de família
Testemunhos das experiências de confinamento mostram a complexa negociação das relações familiares e pessoais durante a pandemia, reforçando o quão problemático é teorizar a família apenas com base na composição do agregado doméstico. A própria definição de “bolha” de contactos está ancorada nessa imagem normativa de família assente nos limites da co-residência. A verdade é que as vidas humanas são interdependentes e aquilo que parece um cliché tem vindo a impor-se ao nosso olhar de uma forma lancinante na gestão dolorosa e dilemática que as pessoas têm vindo a fazer das suas relações próximas.
Reaprendemos com a pandemia que é mais útil entender as famílias enquanto redes de relações próximas entre pessoas unidas pelos mais diversos tipos de laços (parentesco, amizade, vizinhança) e que se ramificam entre diferentes agregados domésticos, localidades e países.
Investigadora na área da Sociologia da Família e da Vida Pessoal; ICS-ULisboa
O Impacto Social da Pandemia, um estudo ICS-ULisboa/ISCTE coordenado por Pedro Magalhães (ICS-ULisboa), Rita Gouveia (ICS-ULisboa), Rui Costa Lopes (ICS-ULisboa) e Pedro Adão e Silva (ISCTE-IUL). A equipa incluiu Ana Nunes de Almeida (ICS-ULisboa), João Ferrão (ICS-ULisboa), João Mourato (ICS-ULisboa), José Santana Pereira (ISCTE-IUL), José Sobral (ICS-ULisboa) e Karin Wall (ICS-ULisboa).
Relatório disponível em http://hdl.handle.net/10451/42911