Desconfina a cabeça
Toda a parafernália de discussões rodeantes a este novo confinamento apenas poderá trazer, mesmo que seja um meio sucesso, uma nova estirpe de impaciência. Como se já não bastasse a constante ansiedade, incerteza e insónia generalizada, ainda se junta ao pote esse último toque necessário ao caos.
Confinar, do latim confinis, traduzido para bom português, confim, implica homologamente à sua etimologia impor um limite, delimitar um espaço onde circulamos, onde nos movemos, funcionamos, vivemos e pensamos. Confinar atira-nos para os confins do dia-a-dia, esse lugar remoto onde o desconforto se torna a regra e o tédio, o princípio regente. Importa, agora, termos caído de novo nesse confim da nossa casa, não nos habituarmos; pois se confinar é um estado de excepção, a mentalidade do confinamento muito facilmente se inclina à normalidade.
Estar confinado não nos limita apenas por reduzir o espaço onde nos podemos mexer livremente, mas por diminuir substancialmente os estímulos, ou melhor, hoje, substituindo-os por outros. A adição à tecnologia anexa à normal sociabilidade humana torna o confinamento uma perpétua situação de corcunda. Diante ecrãs, diante do trabalho, debruçados sobre o peso do isolamento ou de viver com fins à nossa acção, a pressão amontoa-se. É importante, repito, não deixar que seja essa a regra.
Os danos continuam por vivermos fisicamente limitados, rapidamente se torna possível uma atrofia mental. Tão perto das eleições, tão isolados, desamparados, económica e socialmente, é gradualmente mais fácil ver como as limitações ao espaço são também reduções à mente. Toda a parafernália de discussões rodeantes a este novo confinamento apenas poderá trazer, mesmo que seja um meio sucesso, uma nova estirpe de impaciência. Como se já não bastasse a constante ansiedade, incerteza e insónia generalizada, ainda se junta ao pote esse último toque necessário ao caos: impaciência. Algo que não melhora ao hiperbolizarem 2020, rotulando-o como “o pior ano”, como se tal oferecesse consolo a quem está já confinado a casa e a si mesmo, ou pior, a quem infortunadamente perdeu o seu trabalho, a sua vida, ou os familiares.
Não obsta, por isso, que devamos agir sob o melhor dos princípios sabidos, cuidar dos outros. Mas cuidar dos outros é também cuidar de nós, que de um e com o outro se fazem milhares. Impera, de igual modo, desconfinar aquilo cuja liberdade não pode ser retirada. O único modo de amnistiar este novo confinamento é ao desconfinar a cabeça. Sim, por vezes os mantras e clichés do coaching têm alguma correspondência com necessidades psicológicas. Há que ocupar, pensar, estimular, sem nos dobrarmos em excesso sobre nós mesmos, as nossas acções em confinamento; talvez ainda mais do que quando a nossa vida era lá fora, longe deste último reduto na luta contra um vírus que se combate em diversas frentes: saúde, economia, sociedade.
Há que, apesar disto tudo, por estarmos agrilhoados pela necessidade ao espaço habitacional e à incerteza, não deixar que se encaixem correntes em redor da nossa vida mental. É preciso não sucumbir ao desespero e lançarmo-nos às primeiras palavras doces ou duras que soem a verdade, pois quando efectivamente tivermos a hipótese de sair, se não estivermos já internamente desconfinados, nunca o estaremos exteriormente.