O problema dos três corpos da ciência portuguesa
A ciência portuguesa é um problema de três corpos de difícil solução, no qual impera incerteza, arbitrariedade e improvisação. O corpo dos cientistas, o corpo das instituições de investigação e o corpo dos decisores da estratégia nacional não se mexem de forma coordenada.
O problema dos três corpos é um problema clássico da física, que muitos consideram irresolúvel, mas que alguns cientistas intentam ainda resolver. Muito brevemente, quando dois corpos orbitam à volta um do outro como consequência das forças gravitacionais, pode prever-se o seu comportamento com bastante exactidão, aplicando as leis de Newton. No entanto, quando se adiciona um terceiro corpo, o sistema torna-se caótico, impossível de prever e muito sensível às condições iniciais de massa e velocidade dos corpos.
A ciência portuguesa também é um problema de três corpos de difícil solução, no qual impera a imprevisibilidade, a incerteza, a arbitrariedade e a improvisação. O corpo dos cientistas, o corpo das instituições de investigação e o corpo dos decisores da estratégia nacional não se mexem de forma harmónica e coordenada. Porquê?
Os cientistas e as instituições têm algumas divergências, mas no essencial partilham a maior parte das preocupações e interesses. No entanto, o comportamento destes dois corpos é fortemente dependente do comportamento do corpo de decisores, constituído pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). São estes decisores que determinam as verbas, a regularidade e as regras do financiamento da ciência, mas o seu comportamento tem sido errático, inexplicável e inexplicado, imprimindo um carácter caótico ao sistema científico nacional.
Um exemplo suficientemente ilustrativo é o financiamento dos Projectos em Todos os Domínios Científicos (PTDC) nos últimos 20 anos (ver gráfico). Estes projectos são a principal fonte de financiamento directo da investigação em Portugal, um dos pilares básicos do sistema científico nacional, e deveriam ter uma periodicidade anual e umas taxas de aprovação de entre 15% e 20% das candidaturas. Com taxas de sucesso inferiores a 15%, os júris têm já muitas dificuldades em distinguir entre a qualidade das melhores candidaturas, e ganhar torna-se então uma mera questão de sorte, uma lotaria.
Nos anos 2000 a 2002, o orçamento dedicado a PTDC era baixo (40-60 milhões de euros), mas a taxa de sucesso era muito elevada (30-40%), especialmente porque o valor médio dedicado a cada projecto foi baixo (60-70 mil euros para três anos). Estas convocatórias, longe de ser perfeitas, foram distributivas e abrangentes. A grande maioria dos laboratórios portugueses é, na realidade, muito pequeno e poderia sobreviver com estes fundos se tivesse oportunidades anuais de financiamento.
No entanto, entre 2003 e 2008 apenas houve uma convocatória de PTDC a cada dois anos. O orçamento de cada convocatória aumentou significativamente, sim, mas também a incerteza dos investigadores, que não sabiam se teriam novas oportunidades de financiamento no ano a seguir. Como consequência, todos os doutorados do sistema foram forçados a apresentar candidaturas, chegando a triplicar as candidaturas dos anos 2000-2002. As taxas de sucesso ainda se mantiveram elevadas (25-35%) e o valor médio dedicado a cada projecto duplicou (130 mil euros), porque afortunadamente o orçamento global foi triplicado (150-180 milhões).
Estas mudanças eram de facto indicadoras da maturidade do sistema científico português. Por um lado, tinha atingido uma massa crítica de investigadores doutorados no início da década dos 2000, fruto de um grande esforço continuado por formar cientistas e modernizar as instituições de investigação durante os anos 90. Por outro lado, os próprios laboratórios cresceram em tamanho, ambição e complexidade dos modelos experimentais, precisando de mais fundos para as suas investigações. Também se começaram a fazer esforços para trazer de volta uma parte significativa dos cientistas que foram formados com fundos do Estado, através de diversos programas de emprego científico. Este investimento em formação e integração de investigadores deveria ter sido acompanhado por um aumento proporcional no financiamento das suas actividades de investigação. Era necessário um aumento do orçamento e uma maior regularidade das convocatórias para PTDC. Mas isto nunca aconteceu.
A incerteza apenas aumentou na década a seguir, com a chegada da crise económica e as várias mudanças de governo. As regras das candidaturas mudaram múltiplas vezes, e não se sabia quando aconteceria a seguinte convocatória, o seu orçamento, os alvos ou sequer a interface para submeter a candidatura. Entre 2014 e 2020 passaram mais de dois anos entre cada convocatória, e em 2015 e 2016 também se congelaram as novas contratações de investigadores.
Com este panorama, o desassossego dos cientistas foi obviamente aumentando: as infrequentes convocatórias de PTDC têm tido invariavelmente mais de 5000 candidaturas em média, e a taxa de sucesso média ficou sempre em baixo do 15% desejável, chegando a 5% em 2020. A excepção foi a convocatória de 2017, mas unicamente porque a FCT tinha 300 milhões em fundos estruturais europeus que tinha que gastar sob o risco de perder todo o dinheiro. Esta injecção súbita e pontual não se voltou a repetir, e ainda foi fonte de problemas de que falaremos noutra ocasião. Desde 2009 até hoje, o Orçamento do Estado dedicado a PTDC manteve-se perto dos níveis de 2004, só que agora temos mais do duplo de investigadores doutorados no sistema.
Nos próximos dias, portal do novo concurso de PTDC será aberto a candidaturas, e não estamos à espera de mudanças no orçamento nem na arbitrariedade dos decisores: as regras estão desenhadas para aumentar artificialmente a taxa de sucesso e atomizar a distribuição dos fundos por projectos mais curtos e de menor quantia. Estas tentativas do MCTES e da FCT de maquilhar os números podem melhorar a sua imagem nas auditorias, mas não melhoram a realidade da ciência neste país nem contribuem para o desenvolvimento de uma economia nacional baseada no conhecimento. E fica aqui uma aposta: não vão conseguir atingir os seus objectivos, porque se há uma coisa que o cientista português médio sabe fazer é adaptar-se aos caprichos dos decisores.
A solução mais comum do problema dos três corpos consiste em convertê-lo num sistema de dois corpos: 1) aceitando que um dos corpos acabará por ser expulso e os outros dois formarão uma relação binaria estável; ou 2) considerando que um dos corpos tem uma massa insignificante em comparação com os outros dois (e por isso não exerce uma força gravitacional nos outros).
A ciência portuguesa não pode esperar que o corpo de decisores decida estabilizar o seu comportamento errático por si mesmo, nem se pode dar ao luxo de eliminar ou reduzir à insignificância nenhum dos três corpos. Os cientistas e as suas instituições devem juntar-se como um só corpo para forçar os decisores a mudar a sua política científica de forma profunda, estável e duradoura. Se isto não acontecer, continuarão a brincar connosco como têm feito nos últimos 20 anos.