Lixívia ideológica não resolve a pandemia
O Governo e Presidente — com o apoio da maioria dos comentadores e editoriais nos média e de quase todos os partidos — têm ido sistematicamente e sucessivamente contra as recomendações dos seus próprios cientistas. O caso de se manterem todas as escolas abertas na conjuntura atual é particularmente ilustrativo.
Quando a pandemia chegou em força notou-se um novo apreço na sociedade em geral pela matemática e ciência. Infelizmente esse apreço foi uma oportunidade perdida para integrar cientistas mais seriamente na decisão política. Aliás, nem sequer os média mudaram muito nesse aspeto. Fala-se muito na vantagem de haver diversidade de pensamento, mas quantos comentadores com formação científica vêm nos programas e páginas de opinião na televisão e jornais de referência? Não defendo a inclusão de mais pensamento científico na governação e discussão pública para autopromoção. A questão é que estes poderes fundamentais da democracia ignoram as recomendações científicas em detrimento de posições ideológicas.
O Governo e Presidente — com o apoio da maioria dos comentadores e editoriais nos média e de quase todos os partidos — têm ido sistematicamente e sucessivamente contra as recomendações dos seus próprios cientistas. Olhando só para os últimos meses: 1) em vez de confinar em Novembro para poder relaxar mais no Natal como outros países fizeram, o Governo optou por relaxar no Natal e Ano Novo mesmo com um numero de casos diários por milhão quase cinco vezes maior do que no pico de Março/Abril; 2) depois deste relaxamento que se saberia ir aumentar a transmissão comunitária, o Governo abriu imediatamente as escolas e locais de trabalho no inicio de Janeiro esperando dez dias para reunir com o Infarmed; 3) vendo o resultado péssimo das duas decisões anteriores, o Governo apostou a dobrar num confinamento light com escolas abertas, contra a recomendação científica de fechar escolas para os alunos com mais de 12 anos − sabendo de novas variantes aparentemente capazes de maior propagação em jovens. Pois aí está a realidade: hoje Portugal é o país europeu com maior numero de casos por milhão de habitantes − mesmo com o aparente teto falso devido à limitada capacidade de testagem!
É importante notar que estas decisões políticas contra as recomendações científicas têm sido amplamente defendidas pela intelligentsia nacional. Já nem falo da ridícula e nociva obsessão com o “modelo Sueco” há muito desacreditado pela ciência e até pelo próprio Rei e Governo sueco − uma obsessão tanto da esquerda como da direita que, não se percebendo porquê, parecem focar-se na Suécia em vez dos países democráticos da Ásia-Pacífico que melhor responderam à pandemia. Mas o caso de se manterem todas as escolas abertas na conjuntura atual é particularmente ilustrativo. O consenso científico é claro: com o que se sabe do SARS-CoV-2 e suas variantes, quando a transmissão local é elevada como é o caso Português, deve-se fechar as escolas exceto para crianças mais novas. Foi essa a recomendação dada ao Governo pelos seus próprios cientistas.
Mas o Governo optou por uma opção política de manter abertas todas as escolas, incluindo universidades. Uma opção amplamente defendida pela generalidade dos comentadores. Os fundamentos apresentados são essencialmente ideológicos sobre o papel da escola pública na sociedade. Fora do contexto da pandemia, concordo completamente com essas considerações ideológicas para evitar lacunas na aprendizagem que agravam a desigualdade e custos futuros para os jovens. Mas a realidade é a que temos, não a que gostaríamos de ter. Lutar contra ela com argumentos ideológicos é algo como lutar contra a lei da gravidade porque se acha que todos devem ter o direito de voar como os pássaros. Lembra-me quão nocivo foi Trofim Lysenko na União Soviética e China por achar que era a biologia que se devia vergar ao conceito estalinista e maoista de que os seres vivos podem ser infinitamente transformados pela reeducação. Descobriu-se, com milhões a morrer de fome, que não se “educa” bananas a crescer na Sibéria. Aqui descobre-se que nem tampouco vai o SARS-CoV-2 (e variantes) respeitar princípios da escola pública, fronteira aberta, etc. Aliás, o descontrolo epidemiológico só aumenta a probabilidade de o vírus evoluir para estirpes não controladas pelas vacinas, o que seria a maneira mais sinistra da realidade se rir no fim − reality bites, diz-se em Inglês.
É importante também perceber que o Governo e demais intelligentsia argumentam com falsidades a decisão de manter todas as escolas abertas. Afirmam que não há transmissão nas escolas, mas ao mesmo tempo assumem que não se sabe a origem de 87% dos contágios e o ministério da educação não publica os dados de infeções nas escolas. Ao contrário de Portugal, a maioria dos países europeus fechou as escolas, primeiro porque os dados mostram que transmissão ocorre nas escolas em idades mais avançadas e segundo porque ter as escolas abertas obriga a uma movimentação de grande parte da sociedade que mais transmite o vírus. Mas a arrogância algo provinciana do Governo e defensores é ter fé que a natureza e sociedade se comportarão de maneira diferente em Portugal.
Naturalmente que passar as aulas para um regime online tem custos. Mas o custo de as manter abertas não é só um inaceitável número de mortes. Há também um impacto na própria economia por termos agora em mãos uma situação de rotura que só tornará ainda pior todas as desigualdades que os proponentes de se manterem as escolas abertas queriam evitar. É importante dizer-se que o Ministério da Educação teve a primavera, verão e grande parte do outono para preparar o sistema educacional Português para esta vaga de inverno que se sabia que viria. Deveria ter identificado as formas de minimizar as desigualdades inerentes ao ensino online, nomeadamente providenciando recursos informáticos a quem precisa, treinando o corpo docente, ou mesmo estabelecendo regimes heterogéneos de aprendizagem (alguns na escola, outros em casa). Esta falta de flexibilidade e incompetência é agora ofuscada por um posicionamento de superioridade ideológica em relação a outros países que fecharam as escolas. Mas não há nenhuma razão para que o ensino online não tenha sido melhorado para colmatar muitos dos problemas observados no primeiro confinamento geral.
No final das contas, a não integração do conhecimento científico na governação e discussão pública sai caro demais. É um posicionamento anticientífico não assumido. Em última análise e na prática, não acatar as recomendações científicas (como fechar as escolas a partir dos 12 anos) não é diferente de recomendar injeções de lixívia, homeopatia, ou mesmo ser anti vacina. Só que o Governo português nem com um dos resultados piores da Europa recebe dos média a crítica que compete a um quarto poder; antes pelo contrário, a intelligentsia aprova. A pandemia demonstra mais uma vez que se pode ignorar, mas não fugir da realidade − e quanto mais se ignora, menos se consegue fugir.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico