Câmara do Porto e DGPC discordam do ICOMOS que identifica centro histórico como “património em perigo”

O documento do ICOMOS, organismo consultivo da UNESCO, lista 14 intervenções realizadas ou em curso no centro histórico do Porto que põem em causa a sua preservação. Câmara aponta “profunda ignorância” do relatório e DGPC “não se revê” nas conclusões.

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Adriano Miranda / PUBLICO

O centro histórico do Porto está entre os três monumentos e sítios portugueses catalogados como “património em perigo” pelo Relatório Mundial 2016-2019 sobre Monumentos e Sítios em Perigo, divulgado na semana passada pelo ICOMOS Portugal (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, na sigla inglesa), organismo consultivo da UNESCO para o património. Segundo o documento, esta zona da cidade, classificada como Património Mundial da Unesco em 1996 e gerida em conjunto pela Câmara Municipal do Porto (CMP), a Porto Vivo-SRU, a Direcção Regional de Cultura do Norte (DRCN) e a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), sofre actualmente uma “perda gradual da sua integridade devido às demolições significativas de edifícios históricos e a novas construções que afectam a paisagem urbana”. Por outro lado, “a pressão crescente do turismo desde que o edificado se tornou Património Mundial” fez “diminuir em mais de 50%” a população do Centro Histórico.

Estas conclusões são sustentadas com base em 14 intervenções realizadas nos últimos anos ou ainda em curso nesta área. No primeiro lote, figuram, entre outras, a “demolição de estruturas do século XVI do Convento dos Lóios, incluindo o Palácio das Cardosas e os edifícios do século XVII” que deu lugar a um complexo hoteleiro de luxo, não isento de polémica aquando da sua construção ou a “demolição do interior, com excepção do restaurante e do café A Brasileira e acrescento de três pisos” onde surgiu um outro hotel. No segundo, são enumeradas as “demolições em massa de edifícios e interiores de antigos armazéns de vinho do porto na encosta [de Vila Nova de Gaia]”, onde está hoje instalado o quarteirão turístico e cultural World of Wine ou a “demolição do interior da famosa Papelaria Araújo e Sobrinho”, também para construção de uma unidade hoteleira.

Em destaque está o projecto de construção do mercado Time Out na Estação de São Bento, que implica a “demolição do interior da ala sul para construção de um restaurante panorâmico”. De acordo com o ICOMOS Portugal, esta área “não deve ser toda ocupada, uma vez que [fazê-lo] vai descurar a função e acessibilidade da estação”. O relatório sublinha, ainda, que “a estação de comboios nunca deve ser separada da sua função de mobilidade urbana, visto que esta é de extrema importância para o centro histórico do Porto, também como porta de acesso a outros sítios [classificados como] Património Mundial”. Tendo em conta estas questões, o projecto foi “submetido ao Centro de Património Mundial”, mas “não obstante, o município aprovou recentemente o projecto, sem restrições”. 

Questionada pela agência Lusa sobre o relatório, a Câmara do Porto “não concorda, ainda assim, com muitas das conclusões apontadas pelo ICOMOS, que resultam da sua profunda ignorância sobre o património na cidade do Porto” e reitera que “a entidade que tutela o centro histórico do Porto é a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC)”. Em relação ao projecto da Time Out, a autarquia refere que “este teve parecer favorável da DRCN/DGPC e foi também aprovado em sede de CNC (Conselho Nacional de Cultura)”. Em Agosto de 2019, depois de aprovar o projecto, a DGPC garantiu à UNESCO, em declarações à Lusa, que o futuro Mercado Time Out “não põe em causa o ‘valor universal excepcional’ do centro histórico do Porto”. O município afirmou, ainda, que a empreitada, cujo Pedido de Informação Prévia (PIP) foi aprovado em Outubro do mesmo ano, juntará Souto Moura ao leque de arquitectos que trabalharam a cidade e que se “revêem no seu património, sem acolher, contudo, visões antediluvianas e baseadas em falsas premissas”.

"Falta gestão transparente e participada"

O pedido da Time Out para instalar um mercado com espaços de restauração e bares na ala sul de São Bento tem causado polémica desde 2016, mas foi especialmente criticado devido ao “tamanho intrusivo” da torre de 21 metros prevista para o local. Apesar das questões levantadas, a DGPC disse à Lusa que “não se revê na posição crítica do ICOMOS” e reforçou que houve parecer favorável da DRCN, da DGPC e da CNC e que “permitirá a instalação de um equipamento de restauração (com lojas e áreas culturais), enquanto actividade complementar à da estação ferroviária, contribuindo desta forma para a valorização do imóvel classificado e, naturalmente, para o Centro Histórico do Porto”.

Ouvidos pela Lusa, os partidos da oposição acusaram a Câmara de falhar na gestão do património da zona histórica. Em consonância com o relatório, o presidente da distrital do PSD, Alberto Machado, defende que a Câmara “deve fazer, do ponto de vista do exercício das suas competências legais e na interlocução com o Ministério das Infraestruturas e da Habitação, para que seja preservado este monumento”. Os vereadores socialistas apontam que falta ao executivo “uma estratégia de gestão transparente e participada”, factor que facilita a “monocultura do turismo, a expulsão dos moradores e a requalificação feita sem respeito adequado pelos valores patrimoniais”. Neste caso, admitem, “o projecto parece garantir a preservação dos valores patrimoniais”. 

Já a CDU assume, como vem fazendo desde 2017, “um profundo descontentamento com o modelo de remodelação da Estação de São Bento pela Infra-estruturas de Portugal [proprietária do imóvel]”, enquadrando-a numa “lógica economicista e não numa lógica de preservação e valorização do património cultural”, segundo a vereadora Ilda Figueiredo. A concelhia portuense do BE nota que a medida “mais decisiva” para salvar o centro histórico do Porto é “afastar a ‘mão invisível do mercado’” e retirar à SRU Porto Vivo (que desde a sua criação em 2004 deu sempre mais atenção ao negócio imobiliário que à reabilitação urbana) a sua gestão”.

Esta quarta-feira, o presidente da Associação do Porto e Norte, Luís Pedro Martins, afirmou à Lusa que deve ser dada “a maior atenção” ao relatório em questão. “A última coisa que nos podia acontecer era perder este estatuto de património mundial da humanidade”, observa quanto ao título “que permitiu catapultar para o mundo este território que era desconhecido pelo grande turismo. Contudo, reconhece “não ser fundamentalista em relação a estas críticas”, uma vez que as intervenções referidas “voltaram a trazer vida a uma cidade que estava morta”.