As iniciativas de apoio alimentar fazem sentido?

Para uns, as iniciativas de apoio alimentar deveriam acabar. Para outros, a sua permanência justifica-se, sobretudo em contextos de crise. Quem são os principais atores e agentes do setor, e que respostas nos dá a investigação sociológica sobre este tema controverso?

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NFS - Nuno Ferreira Santos

Um universo heterogéneo

Termos como “ajuda”, “assistência” ou “apoio alimentar” fazem parte de um léxico que envolve um alargado leque de serviços que procuram garantir o acesso a bens alimentares a pessoas socialmente vulneráveis. Trata-se de um tipo de apoio que, habitualmente, envolve a doação de alimentos, e é assegurado por iniciativas provenientes da sociedade civil. De forma geral, os bens alimentares doados por estas respostas podem advir de produtores (ex: agricultores), de distribuidores (ex: supermercados), de espaços de consumo (ex: restaurantes) ou de organizações parceiras (ex: Banco Alimentar).

Coexistem, atualmente, vários modelos de ajuda alimentar que apresentam variações entre si, sobretudo a nível ideológico e no seu modo de funcionamento. Uma das iniciativas mais difundidas a nível mundial é a do Banco Alimentar, uma organização assente na redistribuição de excedentes alimentares. Além desta, outras iniciativas têm marcado presença no contexto nacional, desde os supermercados sociais e dos vales/cartões solidários, passando pelas iniciativas que apostam no reaproveitamento de refeições cozinhadas, até organizações que se focam na distribuição de cabazes alimentares. Apesar da vocação de algumas destas respostas para atuar, sobretudo, em contextos de emergência — veja-se, por exemplo, o caso recente da União Audiovisual —, a ajuda por elas prestada tende, em diversas situações, a ser de longo prazo. É sobretudo esta continuidade que tem levado a que surjam críticas sobre o papel destas iniciativas.

Os debates sobre as iniciativas de apoio alimentar

De facto, o papel desempenhado pelas iniciativas de apoio alimentar tem sido foco de diversos debates dentro e fora do contexto académico. Aspetos como o impacto, o funcionamento, a eficácia, a adequação do tipo de ajuda prestada, e questões éticas ligadas à preservação da dignidade humana têm fomentado a existência de posturas díspares em relação ao que estas respostas sociais representam. De um lado, encontramos os defensores destas iniciativas, que acreditam no seu potencial para combater ou minimizar fenómenos como a pobreza e o desperdício alimentar. Do outro, aqueles que consideram que elas representam uma falsa resposta a um problema estrutural bem mais complexo.

No âmbito da segunda perspetiva, existe também quem defenda que este tipo de iniciativas contribui para desresponsabilizar o Estado, que delega parte das suas funções sociais nestas respostas. As críticas também se relacionam com os impactos emocionais para os beneficiários (ex: vergonha), com a possibilidade de gerar dependência e com a inadequação nutricional dos alimentos doados.

Ajuda alimentar em contextos de crise

Estas questões assumem particular relevância em contextos excecionais como foi o da crise económica e financeira desencadeada em 2008, e a crise pandémica que estamos a viver atualmente. Perante uma crise, as iniciativas de apoio alimentar são chamadas a intervir de forma ativa, tendo de duplicar ou triplicar esforços sem que os recursos disponíveis sigam, necessariamente, a mesma tendência. A título de exemplo, no contexto nacional, a principal iniciativa a atuar no terreno, o Banco Alimentar, aumentou de forma significativa a sua intervenção no período 2008-2014, passando de 249 593 indivíduos assistidos para 384 930. Atualmente, face à pandemia, a presidente desta iniciativa, Isabel Jonet, dá conta de uma realidade sem precedentes, sendo que desde o início da crise de saúde pública até outubro de 2020 o número de beneficiários aumentou na ordem dos 60 000, contabilizando-se um total de 440 000 indivíduos assistidos.

Da ideia ao projeto

Apesar da longevidade das iniciativas de apoio alimentar e da centralidade que assumem em contextos de crise, têm persistido várias dúvidas em relação ao papel que desempenham na sociedade. Dúvidas em torno do funcionamento, dos objetivos propostos, das parcerias criadas, dos processos de capacitação dos beneficiários, dos vários recursos (humanos, financeiro e operacionais) mobilizados e da atribuição de responsabilidades em matéria de ajuda alimentar. Embora existam alguns dados sobre ajuda alimentar no contexto nacional, são ainda escassos os estudos que reportem a heterogeneidade deste universo. Todos estes aspetos conduzem, essencialmente, a duas necessidades: i) conhecer as iniciativas e os seus atores; e ii) perceber o que tem vindo a ser feito e o que falta fazer. Foi, justamente, para responder a estas dúvidas e carências que surgiu o meu projeto de doutoramento.

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Perante uma crise, as iniciativas de apoio alimentar são chamadas a intervir de forma ativa, tendo de duplicar ou triplicar esforços sem que os recursos disponíveis sigam, necessariamente, a mesma tendência PÚBLICO

Financiado pela FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P. (Ref: SFRH/BD/130072/2017) e iniciado em 2016, o projeto intitula-se “Iniciativas de apoio alimentar: a visão dos voluntários e dos beneficiários” e propõe-se a analisar três dos principais modelos de ajuda alimentar a atuar em Portugal: organização de combate ao desperdício alimentar, cantina social e mercearia social. Com base numa metodologia que articula observação participante com entrevistas semiestruturadas aos beneficiários, voluntários e responsáveis, o projeto explora o funcionamento destas respostas, bem como as relações que são estabelecidas no seu seio. De forma a salvaguardar todos os participantes e organizações evolvidos, optou-se por recorrer ao anonimato, utilizando pseudónimos e identificações neutras.

As organizações

Durante as entrevistas com os responsáveis e voluntários das iniciativas de apoio alimentar analisadas, os discursos centraram-se nos desafios enfrentados pelas organizações. O acesso a fontes de financiamento acaba por ser uma das principais dificuldades apontadas. A inadequação das redes de financiamento já alcançadas é um aspeto transversal aos vários contextos organizativos.

A organização de combate ao desperdício alimentar surge de forma autónoma, isto é, sem ser apoiada por outra organização, dependendo, portanto, única e exclusivamente da sua capacidade para angariar voluntários, fontes de alimentos e parcerias. Além disso, este tipo de iniciativa aposta fortemente na formulação de candidaturas aos mais variados tipos de concursos nacionais e internacionais, tendo alcançado resultados bastante positivos nas categorias de empreendedorismo, inovação e sustentabilidade. Tanto a cantina social como a mercearia social surgem associadas a organizações já estabelecidas no terreno, que lhes garantem espaços de atuação, recursos humanos e legitimidade na criação de parcerias.

Não fugindo à tendência nacional, as três iniciativas lutam diariamente para garantir a sustentabilidade financeira do projeto que abraçaram, seja pela fragilidade dos apoios existentes, seja pela volatilidade dos mesmos.

Um outro desafio organizacional identificado prende-se com dificuldades na avaliação da atividade e dos serviços prestados por parte das iniciativas. Quando questionados, a título de exemplo, sobre o número de casos de sucesso, ou seja, sobre o número de beneficiários que deixaram de recorrer à ajuda alimentar por não necessitarem da mesma, os responsáveis das iniciativas analisadas apontaram dificuldades na sua contabilização. Os responsáveis e voluntários deram ainda a conhecer fragilidades nos processos de gestão dos produtos que dão entrada e saída das iniciativas, bem como das equipas (voluntários e técnicos). A escassez de mecanismos e ferramentas que permitam um conhecimento aprofundado sobre as iniciativas acaba por contribuir para fragilizar a imagem das mesmas. Esta ausência é particularmente danosa quando as iniciativas procuram parcerias ou financiamento externo.

As relações humanas

Os resultados preliminares desta investigação apontam para a existência de vários tipos de relações estabelecidas em contexto de ajuda alimentar. Coexistem nas várias iniciativas analisadas relações marcadas pelo estabelecimento de fortes vínculos afetivos — “Acabei por encontrar aqui uma outra família” (João, 63 anos) — com relações de carácter mais instrumental — “Estabeleço uma relação meramente cordial, chego e vou embora” (Alfredo, 56 anos). A elevada rotatividade dos voluntários contribui para um maior distanciamento e contactos mais impessoais: “Acho importante não se andar constantemente a saltar, quando conhecem o nosso historial é melhor” (Maria, 46 anos).

Por vezes, o comportamento e as atitudes de um número reduzido de voluntários acabam por marcar de forma irreversível as perceções de alguns beneficiários, conduzindo a tensões e conflitos: Não fui bem tratada, a voluntária respondeu-me: ‘Se está assim tão mau, não venha cá.’ E eu disse: ‘Eu venho cá porque preciso’” (Edite, 64 anos). A existência de uma boa comunicação e de simpatia são elementos valorizados pelos beneficiários entrevistados. Contudo, estabelecer uma relação próxima com os voluntários não se apresentou como um desejo universal, e alguns beneficiários optam mesmo por manter algum distanciamento: “Prefiro manter alguma distância com eles [voluntários] para evitar abusos de confiança… já lá vi muita coisa” (Mercedes, 57 anos). Para isto, podem contribuir os processos de rotulagem, estigmatização e discriminação encontrados geralmente em contexto de ajuda alimentar.

Durante a recolha de dados, foi possível identificar tensões e conflitos que são transversais às várias iniciativas, tais como a dificuldade em lidar com beneficiários que ingerem substâncias que alteram o seu estado de espírito como álcool, medicamentos ou estupefacientes, e a existência de perspetivas racistas e xenófobas. Além disso, foi também possível associar problemas relacionais específicos a duas das organizações analisadas.

No caso da organização de combate ao desperdício alimentar, destacam-se desafios relacionados com a existência de longas filas de espera: “Estava a dar o meu número [de beneficiária regular] mas veio um senhor [beneficiário] e ofereceu-me porrada e tudo, porque disse que estava primeiro [na fila]” (Maria, 46 anos). No caso da cantina social, a fragilização das relações advém, sobretudo, da permanência dos beneficiários na iniciativa por longos períodos de tempo: “Há uns que se odeiam há anos e que não se sentam à mesma mesa nem se falam, quando bebem [álcool] ainda é pior” (Júlio, 50 anos).

Reflexões finais

A fazerem sentido, as iniciativas de apoio alimentar fazem-no, desde logo, para aqueles que delas necessitam e para os que as dinamizam. A forte adesão que têm tido a nível nacional, sobretudo em períodos de crise, espelha a existência de fortes carências alimentares na sociedade portuguesa, sendo na ausência de respostas e estratégias dirigidas à raiz dos problemas complexos da pobreza e do desperdício alimentar que vão atuando este tipo de organizações. Um mal necessário? Talvez, mas prefiro caracterizá-las como uma primeira linha de resposta que deve coexistir com soluções capazes de capacitar e capacitar quem necessita de assistência.


Sociólogo, ICS-ULisboa


  

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