Portugueses obedeceram à ordem para confinar em 2020. E agora?

Dados sobre ao confinamento médio durante o terrível ano de 2020 mostram que os portugueses não só cumprem as regras como às vezes até se antecipam às medidas. Porém, o “pára-arranca” de Novembro e Dezembro com medidas pontuais terá tornado as pessoas mais desconfiadas e, por isso, mais desconfinadas.

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Nelson Garrido

A consultora PSE, especializada em ciência de dados, mediu todos os dias o pulso à mobilidade dos portugueses em 2020 e o resultados é uma previsível arritmia dos movimentos que foram reagindo à evolução da pandemia e às medidas impostas. Os especialistas que andam há vários meses a monitorizar o cumprimento do confinamento em Portugal concluem que a resposta dos cidadãos tem sido exemplar. No entanto, as medidas pontuais de Novembro e Dezembro não só terão sido pouco eficazes como podem ter sido contraproducentes. Também já se percebeu que, apesar dos números de novos casos e mortes drasticamente mais elevados, a ambição do Governo não pode ser atingir os níveis de confinamento de Março e Abril com as actuais medidas menos restritivas.

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Mesmo que os portugueses cumpram à risca o que podem e não podem fazer, o confinamento médio será forçosamente bem mais reduzido em 2021. Mesmo que os portugueses cumpram à risca o que podem e não podem fazer, o confinamento médio deste novo confinamento agora em vigor será forçosamente bem mais reduzido em 2021. Na sexta-feira, o primeiro dia com novas regras, o confinamento médio registado pela PSE foi de 39,5%, ou seja, apenas ligeiramente superior ao dia anterior (com 30,5%) quando as medidas ainda não estavam em vigor. 

Podemos ler de várias formas com os dados recolhidos pela consultora PSE. O trabalho permite, por exemplo, analisar os movimentos da população portuguesa num ano com e sem pandemia, mas também olhar para o agitado ano de 2020 e apreciar o impacto das muitas medidas em diferentes alturas e contextos que afectaram a mobilidade dos portugueses. Por outro lado, a informação deixa ainda algum espaço para especulações sobre o efeito de medidas pontuais e mais duradouras e ainda sobre a resposta dos portugueses mais ou menos cansados de restrições, mais ou menos preocupados com a evolução da pandemia, mais ou menos desconfinados com a falsa sensação de segurança de uma vacina à vista.

Há pouco tempo o médico infecciologista António Silva Graça comparou, durante uma apresentação feita no Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa), o ritmo da evolução da pandemia a uma sinfonia. Dizia então, quando ainda estávamos no início do mês de Dezembro, que podia ser feita uma analogia musical da pandemia com uma célebre sinfonia em que começámos num andamento em Allegro, passámos para um Andante Moderato e havíamos chegado a um Molto Vivaci. Se levarmos esta analogia longe demais, em que o maestro é o Governo que impõe as regras e a orquestra somos todos nós, podemos não só dizer que a sinfonia acelerou recentemente para um ritmo alucinante, mas também que nos tempos mais recentes as ordens inconstantes do maestro fizeram desafinar a orquestra.

O prejuízo do “pára-arranca”

Mais inspirado no que vê nas ruas, Nuno Santos, director da consultora PSE, confirma que as medidas pontuais tomadas no final do ano foram um “pára-arranca, puxa travão e destrava” confuso para a maioria dos portugueses. “Quando olhamos para os dados, acho que as restrições episódicas de Novembro e Dezembro constituíram um ponto claro de inflexão na resposta, até agora exemplar, dos portugueses às medidas. As distinções entre manhã e tarde e dias úteis e fins-de-semana, Natal e passagem de ano lançaram alguma confusão”, avalia o especialista, que é autor de vários estudos sobre a mobilidade publicados nos últimos meses.

Num dos estudos mais recentes sobre o impacto de várias medidas na evolução da pandemia e na saúde da economia, Nuno Santos explicava que “é fundamental sublinhar dois aspectos importantes para a correcta leitura comportamental de mobilidade dos portugueses”. Assim, o primeiro relaciona-se com o confinamento médio diário e o segundo com o acréscimo de confinamento médio a partir do meio de Outubro.

Sobre o primeiro aspecto, o director da PSE lembra que “mesmo antes da pandemia existia um stock de pessoas em média estava em casa”, sublinhando que as pessoas que ficam em casa não são sempre as mesmas. “Existe, naturalmente, rotatividade no stock de pessoas que estão em casa em cada dia. Ao longo de um período de uma semana, mesmo os indivíduos com maior propensão para o confinamento, terão tendencialmente dias em que saem de casa.” Para se ter uma perspectiva das atitudes e dos comportamentos dos portugueses ao longo de 2020, é importante sublinhar que antes da pandemia existia sempre, diariamente, um stock de população que se mantinha em confinamento no lar (entre 25 e 28%).

Sobre o segundo aspecto, Nuno Santos refere que “em Outubro houve um aumento ligeiro do confinamento durante os dias de semana, em Novembro o maior confinamento médio foi efectuado à custa do maior confinamento em fins-de-semana”. Porém, esta irregularidade nas medidas terá criado ruído e causado prejuízo. Segundo já tinha demonstrado num outro trabalho divulgado no final do ano, não só as pessoas se concentraram muito nas ruas durante os períodos em que podiam sair de casa durante os fins-de-semana condicionados, como também mostraram um movimento maior nos dias em que tinham “liberdade” para circular após um confinamento pontual.

O peso das aulas

Outros dos momentos importantes para a análise do comportamento dos portugueses e do confinamento médio está no arranque do ano lectivo, em Setembro de 2020. “Se virmos o quanto variou o confinamento face aos valores médios de confinamento que existiam já na população portuguesa antes da pandemia (Janeiro e Fevereiro), temos uma visão mais clara em termos comportamentais da população portuguesa. Vemos que com o início das actividades lectivas, o confinamento adicional esteve apenas a 2% da normalidade, isto é, praticamente tendo todo o stock de população em mobilidade que existia antes da pandemia”, assinala Nuno Santos. Um estranho regresso à normalidade em tempos anormais. Mais à frente, a partir de meio de Outubro, nota-se “uma tendência de diminuição real da mobilidade, todavia ligeira, chegando a um confinamento adicional de 12,5% acima da ‘normalidade”.

Entre outras ideias-chave, o especialista em ciência de dados nota que olhando para o confinamento adicional (ou seja, o que está acima dos níveis de confinamento que existem habitualmente na população portuguesa), nos últimos dias “podemos ver que o confinamento adicional está apenas entre 5 a 9% acima da normalidade”. Esta sexta-feira, com a entrada em vigor das novas regras de confinamento geral, a mobilidade terá reduzido, mas apenas ligeiramente. “Só na próxima semana, a seguir a este fim-de-semana, é que será mais claro o grau de confinamento com as novas medidas”, diz.

Uma coisa que inevitavelmente terá um peso no confinamento médio é a opção por manter o ensino presencial. “Com o encerramento de escolas e a antecipação do primeiro estado de emergência, os portugueses tiveram um confinamento geral massivo, que atingiu uma média diária de 65% na semana da Páscoa”. Depois, a partir de Maio, o processo de desconfinamento foi sendo gradual até Julho e Agosto.

Na terceira semana de Setembro, com o início da actividade lectiva, “atingiram-se os valores mínimos de confinamento pós-lockdown”. A partir de meio de Outubro, os portugueses “iniciaram voluntariamente uma ligeira contracção da mobilidade”, mostrando que conseguem reagir à pandemia antecipando a necessidade de “inibir a mobilidade” mas também os “momentos de descompressão”. “Com as novas medidas de restrições para 121 concelho e depois com o novo estado de emergência, o confinamento tem vindo a aumentar, fruto essencialmente das inibições aos fins-de-semana”, conclui.

O desgaste

No entanto, a questão das inibições de circulação ao fim-de-semana, também merece uma leitura particular: “A quase totalidade da população continua com probabilidade de interacções mantendo a sua mobilidade semanal. Actualmente, apesar de uma contracção nas últimas semanas de um valor de 92% para 88% na última semana, o que é facto é que quase 90% da população continua em mobilidade durante a semana”.

É impossível saber por que é que as pessoas não ficaram mais em casa, apesar dos números da pandemia. Talvez a euforia da vacina tenha tido um papel nisso, talvez a época de Natal tenha dado o empurrão para descomprimir. Talvez outra coisa qualquer. O director da consultora admite que “a população foi acumulando um sentimento de desgaste e de incompreensão de medidas como as manhãs livres e as tardes confinadas e isso pode ter levado as pessoas a relativizar as medidas no seu todo”. Porém, seja qual for o motivo, para o especialista os dados mostram que os portugueses “estão a reagir cada vez menos”.

Olhando para trás, Nuno Santos refere ainda que “de Julho a Outubro de 2020 os portugueses estiveram com mobilidade normal”, que a queda do confinamento médio na semana do Natal “foi evidente” e também que “a subida (e descida) de fim de ano é um comportamento normal nos últimos três anos”. Aliás, sobre o Natal, repara: “Se em Abril de 2020 o confinamento chegou a ser quase 40% superior ao de 2019, também vemos que no Natal só foi superior em 7%. Um Natal normal.” O problema é que não devia (podia?) ter sido normal.

Neste jogo do descubra as diferenças há demasiadas variáveis que impedem qualquer especialista de ter certezas. Mas, Nuno Santos insiste num ponto: “Os portugueses têm cumprido as regras de forma exemplar.” O confinamento geral agora em vigor terá como principal objectivo evitar contactos para evitar contágios. Algo urgente quando os números da pandemia chegam a valores aterradores. Mas também é verdade que se a população cumprir desta vez (como antes fez) todas as regras impostas (incluindo as excepções previstas) o confinamento médio ficará muito aquém dos níveis alcançados em Março e Abril de 2020.

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