Por que apoio João Ferreira?
Ler um comunista a declarar o seu voto em João Ferreira não constitui novidade. No entanto, ainda que tenha a convicção que as grandes transformações políticas se constroem no dia-a-dia, junto das pessoas, nos sítios onde vivem e trabalham, esta parece-me ser das campanhas eleitorais mais importantes para o nosso futuro próximo. Não tanto por quem será eleito, mas pelo equilíbrio de forças que dela decorrerá.
Sou dois anos mais velho que o João Ferreira. Tinha 13 anos quando caiu o Muro e a memória mais marcante que guardo da URSS é a da lágrima do Misha no fim dos Jogos Olímpicos de Moscovo. Anos antes de os meus pais deixarem de militar no PCP ou de se admitir o fim da URSS, lembro-me das infindáveis discussões inflamadas e críticas sobre a realidade soviética, sobre a qualidade da sua democracia e, a partir da Perestroika (que o partido mandara estudar), sobre o papel recuado a que condenava a mulher. Da Coreia do Norte, talvez o país mais discutido nesta campanha eleitoral (relegando os recentes acontecimentos nos EUA para 2.º plano), não me lembro de ouvir falar. O conhecimento que tenho da sua realidade é difuso mas suficiente para não a querer como exemplo de futuro.
As primeiras eleições presidenciais de que me recordo foram as que Mário Soares venceu Freitas do Amaral, na 2.ª volta mais disputada de sempre. Apesar de Diogo Freitas do Amaral ter, posteriormente, feito um caminho no sentido das causas humanistas, sociais e do direito que me fazem ter um elevado respeito político pela sua memória, não tenho dúvidas que a sua vitória em 1986 e a das forças que o projectavam naquele momento histórico teriam produzido um efeito devastador nas liberdades e direitos alcançados com o 25 de Abril.
A história das reeleições e todos os estudos de opinião apontam para que Marcelo Rebelo de Sousa vença estas presidenciais à primeira volta. Depois de dois mandatos de Cavaco Silva que desqualificaram a função presidencial, há que reconhecer que Marcelo recuperou a instituição conferindo-lhe uma dimensão de proximidade com as pessoas, à imagem de Mário Soares. No entanto, não será indiferente o seu resultado para as decisões que importa tomar no futuro próximo. Neste contexto pandémico, há um exemplo claro que separa as candidaturas de esquerda e de direita. A esquerda defende a mobilização, a preço de custo, dos serviços de saúde privados, ou seja, sem que os donos destes serviços de interesse público lucrem com a pandemia. A direita defende que esses serviços possam ser complementares, pagos a preços de mercado, e que possam decidir a que doenças ou tratamentos dão resposta. No próximo ano e meio de vacinação da população, este problema colocar-se-á a cada período de agravamento do número de hospitalizados. E, na verdade, só os candidatos de esquerda têm uma solução clara para o problema. Nenhum dos outros explica onde irá buscar o dinheiro para pagar as despesas que quer assumir.
Mas não ignoremos André Ventura. Depois de ser candidato autárquico em Loures em 2017 (pelo PSD), ao Parlamento Europeu em 2019 (por PPM.PPV/CDC) e à Assembleia da República em 2019 (pelo Chega!), Ventura participa na 4.ª eleição consecutiva mas, desta feita, assumindo de uma forma mais clara o racismo e a xenofobia como seu projecto político e disparando nos debates todas as notícias falsas que os seus seguidores produzem. Com todos os frente-a-frente terminados, não me restam grandes dúvidas que, para o bem e para o mal, o debate entre Ventura e João Ferreira traduz o confronto do futuro. Ainda que João Ferreira tenha tentado trazer a discussão para o plano das funções presidenciais, tanto Ventura como a moderadora quiseram fazer daqueles 30 minutos um campo de batalha sem regras no meio de um furacão de audiências. Apesar da borrasca, é praticamente consensual que João Ferreira se saiu melhor. Demonstrou estar à altura do combate pela paz e pela solidariedade que temos pela frente, mesmo num campo de batalha lamacento e inclinado. Se, de um lado, estava um candidato a metralhar factos falsos (apoiado por uma coligação entre saudosos do bolor de Salazar e representantes dos interesses financeiros da classe empresarial mais medíocre e corrupta do país) que pretende conquistar votos a partir da construção do ódio, do medo e da mentira junto dos mais pobres, do outro lado, pudemos ver um candidato sem esqueletos no armário, habituado a fazer frente à extrema-direita e a levantar a voz contra as suas mentiras.
Contudo, este não era o debate em que João Ferreira poderia afirmar os seus princípios e propostas mas fê-lo nos outros. João Ferreira partiu da Constituição e da concretização do seu articulado como programa presidencial. Fê-lo, não como uma “cassete”, mas dando-lhe uma dimensão de sonho e de esperança, que jamais havia lido. Na releitura que fiz, motivado pelos debates, encontrei 47 referências a “participação”, 19 a “cooperativa” ou 14 a “cooperação”, e dei por mim a pensar quanto disto temos implementado em Portugal?
A afirmação da Constituição tem vindo a fazer esta candidatura saltar fronteiras partidárias. Parece cada vez mais claro que os tradicionais eleitores do PS irão decidir o seu voto entre Marcelo, Ana Gomes e João Ferreira (já li quem defenda que este é o momento de retribuição do apoio a Soares nas eleições de 1986). A preparação que João Ferreira demonstrou em todos os debates fê-lo conseguir desembaraçar-se da armadilha da ortodoxia que uma esquerda antiga e quezilenta sempre lança. Mais, fê-lo conseguindo não hostilizar as outras candidaturas mas deixando claro que esteve em/com todos os avanços nas posições do PCP, como por exemplo, no que diz respeito às causas LGBTQI. A votação de João Ferreira também traduzirá um sinal do eleitorado para o PCP, que o partido deverá saber interpretar.
Por fim, não posso deixar de reiterar o meu desejo de que tanto Ana Gomes como Marisa Matias suplantem o número de votos da extrema-direita. Sendo certo que, se não houver segunda volta, os votos em Ana Gomes não terão consequências no dia seguinte às eleições, os votos em Marisa Matias terão uma expressão na forma como o BE sai destas eleições. Do meu campo político espero que todos e todas estejam à altura para o futuro que é preciso construir, por mais nuvens negras que pairem sobre ele.