Escândalo com abonos de família precipita queda do Governo dos Países Baixos
Mark Rutte apresenta a demissão a dois meses das legislativas, mas o Governo vai continuar em funções para gerir a pandemia de covid-19. Mais de 26 mil famílias foram acusadas de receber indevidamente abonos de família, sendo obrigadas a devolver o dinheiro, o que atirou muitas delas para a pobreza.
O primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, anunciou a demissão do seu Governo esta sexta-feira na sequência de um escândalo relacionado com abonos de família que deixou milhares de famílias na miséria. O executivo demissionário ficará em funções até 17 de Março, data em que se realizam eleições legislativas.
Na origem da queda do Governo está um inquérito parlamentar que concluiu que os “princípios fundamentais do Estado de direito foram violados” depois de os funcionários do fisco, supervisionados pelo executivo, terem acusado erradamente mais de 26 mil famílias de terem recebido indevidamente abonos de família.
Em muitos casos, as acusações do fisco tinham como base a falta de assinaturas ou o não preenchimento de um formulário. Como consequência, milhares de famílias, além de perderem direito aos abonos, foram obrigadas a devolver milhares de euros, o que as atirou para a falência, criando uma profunda crise social que fez disparar o desemprego e os divórcios.
“Trata-se de dezenas de milhares de pais que foram esmagados pelas rodas do Estado”, admitiu Mark Rutte em conferência de imprensa, citado pela Reuters, ao anunciar a demissão do Governo, que viria a comunicar mais tarde ao rei Willem-Alexander. “Não podem restar dúvidas, é uma mancha colossal”, acrescentou Rutte, defendendo a “reorganização por completo” do sistema de atribuição de abonos.
As acusações falsas às famílias visadas durou, pelo menos, entre 2012 e 2019, e os imigrantes – principalmente de origem turca ou marroquina, segundo o El País – e cidadãos com dupla nacionalidade foram os principais visados. Orlando Kadir, um advogado que representa cerca de 600 famílias, disse que estas foram visadas com base em “perfis étnicos feitos por burocratas que escolheram os nomes que pareciam estrangeiros”.
“Nunca é aceitável que alguém se sinta discriminado com base na sua nacionalidade, raça, género ou orientação sexual”, defendeu Rutte, admitindo a responsabilidade de todo o seu Governo num escândalo que “criminalizou pessoas inocentes, destruindo as suas vidas”.
Na sequência das acusações falsas do fisco, muitas famílias viram-se obrigadas a pagar valores até 100 mil euros em poucos meses, o que as deixou na falência. Reconhecendo o erro, o Governo aprovou um pacote de 500 milhões de euros para pagar cerca de 30 mil euros a cada uma das mais de 10 mil famílias prejudicadas erradamente. Muitos outros casos permanecem nos tribunais.
Responsabilidade sem custo político
Ao apresentar a demissão, Mark Rutte, do Partido Popular da Liberdade e Democracia (VVD), de centro-direita, anunciou que o executivo vai continuar em funções até às eleições de Março, justificando essa decisão com a necessidade de responder à pandemia de covid-19, numa altura em que os Países Baixos prolongaram o confinamento geral pelo menos até 9 de Fevereiro.
A queda do Governo começou a ganhar forma logo na quinta-feira, quando Lodewijk Assche, líder do Partido Trabalhista, principal partido da oposição, apresentou a sua demissão e afastou-se da candidatura às legislativas – Assche foi ministro dos Assuntos Sociais entre 2012 e 2017, saindo do executivo após as eleições que, nesse ano, deixam os trabalhistas fora da coligação de Governo.
Com a saída de cena de Assche, a pressão aumentou sobre Mark Rutte, que lidera há quatro anos uma coligação de quatro partidos (além do VVD, fazem parte do Governo os liberais do D66, os democratas-cristãos do CDA e a União Cristã) e procura o quarto mandato consecutivo como primeiro-ministro.
O escândalo, contudo, acabou também por ser uma oportunidade para apaziguar disputas internas e cimentar a posição do VVD. As sondagens são bastante favoráveis a Mark Rutte, com o seu partido de centro-direita a ter cerca de 30% das intenções de voto, o dobro do partido que surge em segundo lugar, o Partido da Liberdade, de Geert Wilders, de extrema-direita.
A confirmarem-se estes números, o VVD conseguirá aumentar o seu número de deputados (actualmente tem 33, num Parlamento com 150 lugares), o que poderá dar mais força a Rutte nas negociações para a formação do futuro Governo, evitando o cenário de há quatro anos, quando o impasse se manteve durante vários meses.
Com a demissão em bloco dos quatro partidos que compõem o executivo devido ao escândalo dos abonos de família, e com o Partido Trabalhista fragilizado com a saída do seu líder no seguimento do mesmo problema, é pouco provável que o Governo seja prejudicado nas urnas.
“O ministro responsável agora está na oposição e renunciou. Os funcionários públicos estão a ser responsabilizados pelos serviços fiscais predatórios. O Governo está a assumir uma ‘responsabilidade política’, mas com pouco ‘custo político'”, disse ao The Guardian o analista Rem Korteweg do Instituto Holandês de Relações Internacionais Clingendael.
A demissão do Governo foi bem recebida pela oposição, com Jesse Klaver, líder dos Verdes, – uma das surpresas das eleições de 2017 e que surge bem colocado nas sondagens -, a falar numa “decisão certa”. “Que seja um novo começo, um ponto de viragem”, afirmou Klaver, considerando que este é o momento certo para a “reconstrução do estado social”.