Os fantasmas de um bem maior

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Pensávamos que La Llorona podia chorar por causa de um país que sofre. Era a Guatemala, a nossa pátria, chorando pelo seu povo desesperado.” Jayro Bustamante, realizador guatemalteco

Justiça penada

Reza a lenda do folclore latino-americano que La Llorona (a chorona) é o fantasma de uma mulher que afogou os filhos, uma alma penada que vagueia chorando pelas noites, condenada a lamentar perpetuamente o marido que perdeu e a amargurar os descendentes que matou. O realizador Jayro Bustamante aproveita o mito para título e inspiração do seu último filme (esta semana escolhido pela sociedade de críticos de cinema de Houston como candidato a melhor filme em língua estrangeira, já depois de os críticos de Boston lhe terem atribuído prémio idêntico), derradeiro capítulo do seu tríptico sobre a Guatemala (o primeiro estreou no Festival de Berlim em 2015). Para lembrar o genocídio do povo ixil nos anos 1980, Bustamante e o seu co-argumentista Lisandro Sánchez criam um ditador fictício (inspirado na realidade) que escapa à condenação por crimes contra a humanidade para se ver perseguido por forças sobrenaturais. “Embora a chorona seja uma lenda muito misógina, também é querida. Decidi transformá-la e fazê-la chorar por toda a gente desesperada que procura justiça”, dizia o realizador em Outubro ao diário El Correo sobre o filme que teve a sua estreia mundial o ano passado no Festival de Veneza. Recorrendo a um fantasma para falar dos fantasmas deixados por um ditador cruel (Efraín Ríos Montt, condenado a 80 anos de prisão por genocídio e crimes contra a humanidade em 2013, pena anulada pelo Tribunal Constitucional) e uma guerra civil longa e sangrenta (1960-1996, com 200 mil mortos e 45 mil desaparecidos), Bustamante recupera as marcas da história para as contrapor a quem quer, no seu país, “fingir que a vida é maravilhosa” e que chega a negar até que tenha havido genocídio.

Chamem-me Adama

No Burkina Faso, 23% das crianças com menos de cinco anos não estão registadas. Essa invisibilidade social deixa-as vulneráveis à exploração e à violência. Segundo a Direcção Geral de Modernização do Estado Civil, dos 760 mil nascidos de 2018 apenas 45,5% foram registados dentro do prazo de dois meses previsto na lei. Sem a certidão de nascimento, estas crianças não podem estudar além da primária, porque o certificado de conclusão de estudos só é entregue às crianças que possuem certidão de nascimento. “Não ter uma é uma forma de violência: sem acesso aos direitos básicos, à educação ou aos cuidados de saúde, sem possibilidade de viajar ou de herdar”, conta ao Le Croix Jean Claude Wedraogo, da Plan International. Na região do Extremo Norte nos Camarões, a situação é idêntica, 380 mil alunos da escola primária não têm registo e, por isso, nunca poderão obter o certificado de estudos primários. “Sem esse documento, as crianças abandonam os estudos”, disse ao Le Monde Tombalbye Japonais Fils, chefe da agência regional do Departamento Nacional do Estado Civil. A falta de locais de registo que obrigam a grandes deslocações demovem os pais e alimentam a corrupção, com autoproclamados registadores oficiais que falsificam documentos ou cobram às famílias por um serviço que é gratuito. Como explica Wedraogo, para o caso burquinabê, mas que poderia estar muito bem a falar da situação camaronesa, “estes invisíveis são condenados a viver intimidados à margem da sociedade”. Na escola do Campo Militar de Mora, nos Camarões, diz Adama: “Eu sei o meu nome porque me chamam Adama Seini”.

Milhares de almas a penar

Os agentes de viagem e guias de turismo de Itália saíram à rua esta semana em Roma para pedir dignidade. Afectados pela pandemia que suspendeu as viagens e travou o turismo mundial, manifestaram-se para demonstrar que estão moribundos, mas vivos e pretendem lutar por outro desfecho. “Não somos fantasmas”, dizia um deles, disfarçado com um lençol com dois buracos a fazer de olhos, evocando a caricatura que nos habituamos a identificar como a dos espectros. Esta já é quarta manifestação organizada pelo sector para tentar chamar a atenção das entidades oficiais para uma actividade que a covid-19 desesperançou: “Levamos meses numa zona vermelha perpétua e ninguém se apercebe de que este sector está a morrer”, afirmou Enrica Montanucci, presidente da organização dos agentes de viagem de Itália, citada pelo site de notícias de turismo Preferente. Os agentes não pedem mais que os outros sectores económicos afectados pela crise, apenas o mesmo que deram aos outros e que muitas agências de viagens nunca chegaram a receber quase um ano depois. “Agências abertas, mas não se pode viajar. Ajuda imediata ou será o nosso funeral”, lia-se no pano na frente da manifestação que juntou os agentes e os guias turísticos na praça romana do Povo, representantes de 120 mil almas que lutam para não virar penadas.

“Eternautas”

César Aira, um dos mais prolíficos e interessantes escritores argentinos, escreveu em 1990 Los Fantasmas, sobre um edifício de apartamentos por finalizar onde, no espaço de um dia (o último do ano), a família dos proprietários, com arquitectos e decoradores, se cruza com os trabalhadores e o porteiro (instalado provisoriamente com a sua família) e uma série de fantasmas nus que uns vêem e outros não. Na noite de Ano Novo, a filha dos ricos decide a juntar-se aos espectros. Benjamin Nugent lembra a obra na recensão que escreve esta semana no New York Times ao livro de estreia de Daniel Loedel para o incluir na linhagem da literatura fantástica argentina que vem de Borges, de Bioy Casares, de Silvina Ocampo e depois evolui para um realismo fantástico que mais do que opção é necessidade. Um país atormentado por uma história tão cruel em certos momentos, ganha refúgio num mundo fantástico para conseguir contar uma realidade onde as pessoas são “desaparecidas” às dezenas de milhar: como nessa novela gráfica, síntese maior desse político-fantástico, que é El Eternauta, de Héctor Germán Oesterheld (com desenhos de Solano López). Loedel, um editor livreiro de Brooklyn, inspirou-se na história da sua meia-irmã, Isabel, para contar, em Hades, Argentina, a história de um homem que dez anos depois de fugir de Buenos Aires regressa para tentar reencontrar uma paixão de infância, antiga guerrilheira dos Montoneros, organização peronista que combateu a ditadura nos anos 1970 – exactamente como a meia-irmã do autor que morreu na luta. “Senti que era realmente importante contar esta história porque, mesmo havendo mal neste mundo, a maioria do mal, na minha opinião, é praticado por pessoas que acreditam estar a agir em nome de um bem maior”, afirma Loedel em entrevista à NPR.

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