Na Europa sem fronteiras só três capitais não têm comboios internacionais. Lisboa é uma delas
Viena, Berlim e Budapeste são responsáveis por um terço dos comboios internacionais entre capitais europeias. As capitais dos países periféricos são as que têm menos ligações ferroviárias internacionais. Em Ano Europeu do Transporte Ferroviário, viajar de Lisboa a Madrid obriga a apanhar quatro comboios e a fazer três transbordos.
O Lusitânia Expresso era um comboio nocturno que desde 1943 ligava Lisboa a Madrid. Em Março do ano passado, devido à pandemia, o serviço foi suspenso e a Renfe (operador espanhol que explorava este comboio em sociedade com a CP) já fez saber que não o pretende retomar tendo em conta o seu défice de exploração.
Desta forma, as duas cidades ibéricas deixaram de ter qualquer relação ferroviária com outras capitais. Na Europa continental só há mais três capitais nessas condições: Helsínquia, Talin e Atenas. Não por acaso, são capitais de países periféricos no mapa do velho continente: Portugal, Espanha, Finlândia, Estónia e Grécia. Uma realidade contrastante com as capitais do centro da Europa, que têm entre si comboios internacionais, por vezes de hora a hora.
No top dessas cidades estão Viena, Berlim e Budapeste, responsáveis por 26 rotas internacionais entre capitais, de um total de 82 que diariamente se efectuam na Europa.
A Fugas estudou os horários dos comboios entre as capitais da União Europeia, incluindo também a Suíça e a Noruega, mas excluindo os países insulares (Irlanda, Chipre e Malta), optando, no entanto, por incluir o Reino Unido dada a ligação ferroviária de Londres ao continente através do Eurotúnel. Considerou-se ainda Amesterdão como capital dos Países Baixos no que diz respeito às ligações ferroviárias tendo em conta a sua proximidade à capital política Haia.
E a conclusão é que há uma emaranhada teia de relações internacionais sobre carris que é mais densa no Leste da Europa. Só Varsóvia, Budapeste, Praga e Bratislava são responsáveis por 23 ligações entre capitais. Se juntarmos Berlim e Viena, esse número passa para 41, ou seja, metade do total dos comboios internacionais entre capitais.
A tipologia dos comboios varia. Há ligações nocturnas com fartura e com diferentes expressões. Os EuroNight que servem Varsóvia, Bratislava, Budapeste, Viena, Roma e Praga, os NightJET entre Viena e Bruxelas, ou simplesmente o train de nuit que liga numa só viagem Paris a Berlim e a Varsóvia com seguimento a Minsk (Bielorrússia) e Moscovo (Rússia).
No centro da Europa predominam os Intercidades entre as capitais, bem como os Railjet, que são comboios frequentes com horários cadenciados entre Budapeste, Viena e Praga, ou até expressos regionais como os que existem, a cada meia hora, entre Viena e Bratislava.
Mas, como não podia deixar de ser, há também a alta velocidade, com comboios a mais de 300 Km/hora a ligarem Paris, Bruxelas, Londres e Amesterdão/Haia. Os ICE (comboios de alta velocidade alemães) também se estendem de Berlim a Bruxelas, Amesterdão/Haia, Viena e até à suíça Berna.
Em geografias mais periféricas compreende-se que haja capitais com apenas uma ou duas ligações entre si. São os casos de Copenhaga, Estocolmo, Oslo, Vílnius, Riga, Sofia e Bucareste, incluindo-se também Berna (ligação a Berlim) e Roma (ligação a Viena).
É claro que se excluirmos as ligações entre capitais europeias e considerarmos apenas relações internacionais, emergem cidades que são campeãs a receber e a expedir comboios do e para o estrangeiro. Em Itália, Milão e Veneza são as capitais dos comboios internacionais, bem como Zurique, na Suíça, e Frankfurt, na Alemanha. E até em Espanha há comboios de Barcelona para Paris. Para não falar da periférica Irlanda, que tem o Enterprise, o comboio que liga Dublin a Belfast, no Reino Unido.
Helsínquia tem uma ligação internacional com São Petersburgo e Madrid com Marselha. O que nos leva ao início do texto: se em vez de se considerar ligações entre capitais, tivermos em conta apenas relações internacionais, ficamos só com três capitais europeias que não comunicam por comboio para nenhum país vizinho: Atenas, Talin e ... Lisboa.
Em 1986 havia 20 comboios diários entre Portugal e Espanha, agora há quatro
O Portugal ferroviário de 1986, ano em que o país aderiu à CEE, era, naturalmente, muito diferente do actual. Linhas electrificadas só as do Norte, Sintra, Cascais e os ramais de Tomar e Alfarelos. Imperavam ronceiros comboios a diesel e praticamente toda a sinalização era mecânica, dependente de meios humanos, a anos luz dos modernos sistemas informáticos com que se faz hoje a gestão do tráfego ferroviário.
Um exército de 21.500 funcionários assegurava o funcionamento dos caminhos-de-ferro em Portugal. A “Companhia”, como então se chamava à CP, tinha a seu cargo a exploração dos comboios e a manutenção e gestão da infra-estrutura.
Não havia auto-estradas e talvez por isso, apesar de a ferrovia portuguesa não ser tecnologicamente avançada, o comboio era a alternativa possível para a mobilidade de muitos portugueses, quer nas deslocações pendulares casa-trabalho, (como ainda hoje acontece), quer nas viagens de longo curso e internacionais (como hoje já não acontece).
Vejamos as ligações a Espanha e França. Nesse tempo, dois comboios diários em cada sentido ligavam Lisboa a Madrid. Os TER (Tren Español Rápido) eram umas automotoras Fiat que nesse tempo ligavam Madrid às principais cidades do país vizinho e que também faziam serviço a Lisboa. Eram à época o único material que circulava em Portugal dotado com ar condicionado. A viagem entre Santa Apolónia e Atocha demorava dez horas, saindo de Lisboa às 7h37 para chegar a Madrid às 17h37 (hora espanhola). Em sentido contrário partia às 10h05 e chegava a Lisboa às 19h05.
O TER fazia também serviço nas estações portugueses e, mediante o pagamento de um suplemento, podia-se apanhá-lo nas estações de Beirã-Marvão, Castelo de Vide, Vale do Peso, Abrantes e Entroncamento.
A ligação nocturna entre as duas capitais ibéricas era efectuada desde 1943 pelo Lusitânia Expresso, que também fazia o percurso pela linha do Leste e ramal de Cáceres. Saía às 21h de Lisboa e às 23h10 de Madrid, demorando a viagem 11 horas, tempo suficiente para usufruir da carruagem-cama, podendo também jantar-se a bordo no restaurante do comboio.
Tanto o TER como o Lusitânia paravam pouco tempo na fronteira de Beirã-Marvão, pois o controlo dos passaportes era feito em trânsito, à época pela Guarda Fiscal que acompanhava os comboios entre Lisboa e a fronteira alentejana.
Mais a norte, por Vilar Formoso passava então o mais antigo comboio internacional. O Sud Expresso saía de Lisboa às 15h10, parava na estação fronteiriça às 21h10 e chegava a Hendaya às 10h15 (hora francesa). A ligação para Paris partia às 11h40 e chegava-se à Cidade Luz às 19h15.
Em 1986 o Sud era precedido do Rápido Internacional que, vindo do Porto, seguia também para Hendaya. Nessa altura, o tráfego internacional justificava a existência de dois comboios na rota para Paris, sobretudo devido ao mercado dos emigrantes, que usavam estas ligações de e para as estações intermédias da Beira Alta.
No Norte, a CP tinha três comboios em cada sentido para a Galiza. Os Porto-Vigo eram realizados por automotoras portuguesas com motores Rolls Royce (algumas delas ainda hoje circulam no Algarve, mas já depois de uma modernização que incluiu uma substituição por motores Cummins) e efectuavam paragem em 17 estações intermédias, funcionando como comboios rápidos na linha do Minho. A viagem demorava entre três horas e 50 minutos a quatro horas e meia.
Por fim, na fronteira de Elvas/Badajoz havia também três comboios portugueses em cada sentido. A CP não os considerava então como ligações internacionais, mas era possível obter em Badajoz correspondência para Mérida e Sevilha. Estes comboios, realizados com locomotivas diesel da série 1400 e carruagens Sorefame, eram à época mais confortáveis do que os comboios espanhóis que estacionavam na estação fronteiriça, alguns deles ainda com bancos de madeira.
E em Portugal hoje?
Actualmente, e depois da suspensão do Sud Expresso e do Lusitânia Expresso, as relações internacionais ferroviárias resumem-se a um comboio de ida e volta entre Porto e Vigo (demora 2h22, com paragens em Nine, Viana e Valença) e uma ida e volta a Badajoz.
O material não evoluiu muito desde 1986 e num dos casos até é pior. Para Vigo, a viagem é feita em barulhentas e desconfortáveis automotoras UTD 592, que a Renfe alugou à CP. Há 35 anos já circulavam em Espanha em serviços regionais. Agora, depois de saírem de circulação em Espanha, estão a acabar os seus dias no Minho, Douro e Oeste.
Já a relação para Badajoz é agora muito pior do que em 1986. A CP utiliza o material mais antigo da sua frota - uma automotora Allan, comprada à Holanda nos anos 50 do século passado e sujeita a uma modernização em 1999. É composta por uma única carruagem com uns assentos incómodos e apertados, concebidos para viagens curtas, mas que neste caso duram cerca de três horas.
Em 1986 dizia-se que a CEE iria abolir as fronteiras. Em Portugal isso foi levado à letra no que diz respeito às fronteiras ferroviárias.