Covid-19: no Brasil, a vacinação é só mais um capítulo do confronto político
Bolsonaro chegou a festejar a suspensão dos testes clínicos e afirmou que não irá vacinar-se. Agora, entrou numa corrida contra o governador de São Paulo pela vacina, e por votos.
Desde os primeiros casos de infecção pela SARS-CoV2 no Brasil, a pandemia nunca deixou de assumir contornos políticos, e não científicos. Assim, não é de estranhar que também a vacinação contra a covid-19 esteja envolvida numa acirrada guerra política que já está a ter efeitos negativos na imunização da população.
Desde Dezembro que os brasileiros vêem as imagens do início de uma campanha de vacinação histórica nos países europeus, nos EUA, na China, Israel, entre outros. Mas num dos países mais castigados pela pandemia – nos últimos dias foi passada a barreira dos 200 mil mortos, um número superado apenas nos EUA – a chegada da vacina ainda é uma miragem para muitos.
Só na primeira semana de Janeiro é que houve o primeiro pedido para a certificação de uma vacina para uso emergencial. A iniciativa coube ao governador do estado de São Paulo, João Doria, que tem estado na linha da frente dos esforços para desenvolver um imunizante. Os planos do governo do estado mais populoso do Brasil é iniciar a vacinação a 25 de Janeiro, data da fundação da cidade de São Paulo, com a CoronaVac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac e fabricado pelo Instituto Butantan, do Brasil.
Esta terça-feira, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) revelou que a taxa de eficácia geral da vacina é de 50,38% e espera-se que a autorização para se dar início à campanha da vacinação seja dada nos próximos dias. Os primeiros grupos a serem imunizados devem incluir os profissionais de saúde, indígenas e quilombolas (descendentes de escravos foragidos), de acordo com a imprensa brasileira.
Fora do estado de São Paulo, tudo parece mais incerto. Durante meses, o Governo federal do Presidente Jair Bolsonaro mostrou muito pouco empenho em garantir o início atempado de uma campanha de vacinação a nível nacional. Na verdade, Bolsonaro contribuiu sobretudo para retirar força à imunização, com declarações públicas em que desvalorizou a vacinação.
Em Dezembro, o Presidente brasileiro afirmava que não iria ser vacinado e que a decisão dependia da vontade de cada um. “Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final”, disse Bolsonaro numa entrevista, contrariando tudo aquilo que a comunidade científica aconselha para que seja alcançada uma imunização de grupo. Antes, o Presidente tinha comemorado nas redes sociais a suspensão temporária dos testes clínicos da CoronaVac por causa da morte de um dos participantes.
Perante este cenário, governadores e até alguns autarcas começaram a contactar directamente o Instituto Butantan para averiguar a possibilidade de adquirirem vacinas. Depois de responder de forma dividida às primeiras vagas da pandemia, o Brasil arriscava-se a manter-se dividido na estratégia de vacinação.
A ausência de esforços a nível federal para que a vacinação avançasse levou o Supremo Tribunal Federal a exigir um plano ao Governo e a determinar a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. Os especialistas acusam o negacionismo de Bolsonaro de estar a desperdiçar o património clínico da experiência acumulada do Programa Nacional de Imunizações, um dos maiores do mundo e elogiado internacionalmente pelo progresso na vacinação no Brasil.
Esta semana, o influente presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, criticou a postura de Bolsonaro face à vacinação, que considerou o maior erro do seu mandato, e deixou um sério aviso: “Acho que a vacina pode levar a um processo de impeachment no futuro.” Vale a pena lembrar que é o presidente da Câmara dos Deputados – o mandato de Maia termina em Fevereiro – que tem a competência para abrir processos de destituição do Presidente.
Corrida pela vacina
Pressionado pela comunidade científica, pela concorrência política de Doria e pelo agravamento da situação epidémica em vários estados, o Governo federal acabou por reassumir a iniciativa e anunciou, há cerca de uma semana, os primeiros passos para dar início à campanha de vacinação.
Depois de ter recusado adquirir doses da vacina desenvolvida entre a Sinovac e o Butantan – que apelidou de “vachina” –, Bolsonaro recuou e anunciou que pretende encomendar cem milhões nos próximos meses. Ao todo, o Governo federal espera garantir ao longo do ano 354 milhões de doses entre a vacina do Instituto Butantan e a que foi desenvolvida pelo laboratório Astrazeneca e pela Universidade de Oxford numa parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O Brasil assiste agora a uma corrida pela vacinação, entre São Paulo e o Governo federal, que esconde, mais do que tudo, a ambição política de Bolsonaro e Doria, ambos de olhos nas eleições presidenciais de 2022. Abre-se um período de ainda maior incerteza, não se sabendo se, por exemplo, o Governo federal tem condições legais para passar por cima do plano do governo estadual paulista.
“A Anvisa diz que as vacinas que receberem autorização emergencial devem ser preferencialmente utilizadas para políticas do Ministério da Saúde, mas não há nenhum instrumento que obrigue o estado de São Paulo a entregar suas vacinas para o Governo federal”, diz o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Daniel Wang, ao site Nexo.