Nos últimos dias acompanhámos estupefactos os acontecimentos na capital dos Estados Unidos da América, o reflexo de uma democracia em vertigem. A invasão do Capitólio por parte de apoiantes do actual presidente norte-americano, Donald Trump, traduz-se na convicção da ilegitimidade eleitoral da vitória consumada pelo Partido Democrata, consubstanciando-se na figura de Joe Biden e Kamala Harris. Na verdade, este acontecimento foi antecedido por diversas declarações públicas de Trump, nas quais o mesmo demonstra a vontade de continuar a disputar a presidência, criando teorias e conspirações que visam justificar que a sua derrota não traduz a vontade popular nacional mas que, ao invés disso, resulta de estratégias e fraude. Vários grupos de extrema-direita, entre os quais os conhecidos Proud Boys, entenderam nestes anúncios os dog whistles (refiro-me aqui a uma mensagem política que emprega linguagem em código que parece significar algo para a população em geral, mas tem um significado mais específico e diferente para um subgrupo-alvo), motivando acção disruptiva para alcançar tais objectivos.
Foi internacional o acompanhamento do evento que chocou milhares pelo completo desrespeito pelas práticas democráticas, as mesmas práticas que os EUA assinalaram como ausentes e tentaram implantar agressivamente em diversos pontos do globo. É de ressalvar e reflectir não só sobre o acontecimento, mas também sobre a forma, o meio através do qual esta informação nos chegou.
Acompanhei a invasão do Capitólio, em Washington D.C., através da CNBC, um canal cuja inclinação política é classificada como centrista, segundo várias páginas, tendo-me surpreendido com a cobertura e o discurso relativamente aos invasores. São evidentes as distinções entre o jornalismo norte-americano e o europeu (ou, mais especificamente, o português), que derivam de tradições histórico-sociais completamente diferentes, reflectindo-se num maior ênfase de comentários por parte dos estadunidenses.
Toda a mobilização foi reflectida como sendo meramente incitada por Trump, tendo sido os indivíduos envolvidos descritos como não tendo uma agenda pessoal. Reflexo dos media num país cada vez mais polarizado, dividida em tribos e incapaz de dialogar, reduzindo todos os opositores a inequivocamente errados.
Quem são os ocupantes que quiseram tomar o Capitólio e porque estavam ali? Porque é que o discurso demagogo de Donald Trump continua a ser relevante para milhares de norte-americanos, mobilizando-os de tal forma a meio de uma pandemia mundial? Quais são os problemas que os levam a exigir respostas políticas de formas tão dramáticas?
As mobilizações convocadas pela extrema-direita reflectem uma ausência estrutural de respostas sociais que afectam a vida da maioria da população. Joe Biden repetiu, inúmeras vezes, ao longo dos discursos que visavam apaziguar a população que “a América não é aquilo”. No entanto, estabelecemos na fundação dos Estados Unidos a exploração racial e as desigualdades sócio-económicas. Na ausência da garantia dos direitos básicos à maioria da população, a injustiça localiza-se no âmago da nação.
Quando os media insistem em Donald Trump como a causa de todos os problemas que resultam na rápida deterioração da frágil democracia norte-americana, reduzindo os seus apoiantes ao estereótipo de saloios republicanos, incapacitados cognitivamente, de condição sócio-económica baixa, falham em reconhecer a verdade fundamental sobre os Estados Unidos. Um país inerentemente injusto, incapaz de responder estruturalmente em áreas centrais como a saúde, a educação, por exemplo, é um país que cria brechas pelas quais se infiltra o discurso de ódio e, consequentemente, a extrema-direita.
Cabe-nos a nós, em Portugal, reconhecer e evitar os erros mediáticos que criaram e mitificam a figura de Donald Trump, “vendendo-o” como uma opção válida para responder ao descontentamento. É crucial impedir o crescimento de candidatos de extrema-direita por todo o mundo. Preservar a liberdade nunca foi tão importante como agora.