Lar após lar
Se queremos tratar melhor os nossos mais velhos temos que estudar, conhecer o que se passa, ensaiar soluções, errar e corrigir. Não há tempo a perder.
Lar após lar são às dezenas o número de infetados. Quase 40% das mortes ocorrem entre pessoas que vivem em lares. A letalidade entre infetados triplicou em Dezembro os valores de Julho. Os centros de dia estão encerrados desde Março, as visitas fazem-se sem contacto físico, onde é possível tenta-se a separação entre infetados, assintomáticos e saudáveis por pisos, ou por zonas. O número de testes em lares triplicou em meio ano. Todavia, os casos de infeção em lares representam uns escassos 5% do total de casos covid. A propagação torna-se infernal, criando dramas de doença física e mental nos internados e no pessoal, esgotado pelo avanço da epidemia e desesperado com a escassez de meios. Grande parte dos trabalhadores está em duplo emprego, pela insuficiência do salário; de tarde e de noite prestam apoio a idosos nos domicílios ou em outras unidades, contribuindo para espalhar o vírus de casa para casa, de lar para lar e destes para hospitais e vice-versa. Ser ajudante de lar deve ter-se tornado o emprego mais perigoso do País.
Este é o panorama dos lares (nursing homes) nos EUA, tal como é descrito em recente artigo do NY Times. Os cuidados de longa duração continuam subdotados em pessoal, escassamente regulados e vulneráveis à predação dos conglomerados lucrativos e a empresas puramente financeiras. Dois terços dos lares pertencem a empresas que visam o lucro. As associações de proprietários queixam-se de reembolsos baixos, induzindo o recrutamento de pessoal de baixa qualificação e a degradação da qualidade do serviço. Todavia, o setor tem vindo a ser “deglutido” por grandes cadeias e empresas puramente financeiras, aumentos de financiamento continuam a não se traduzir em pessoal, apesar de ser conhecida a associação direta entre a qualidade e suficiência de pessoal e menos casos covid. E existem 800 mil pessoas em lista de espera para internamento.
Tirando a propriedade – a maioria dos nossos lares pertence a Misericórdias e IPSS, embora se desconheça o peso das empresas e grupos de fim lucrativo –, tudo o resto parece o retrato da situação em Portugal. Há diferenças, todavia: nos EUA existe uma entidade reguladora do setor, fraca é certo; entre nós não, há apenas inspeções a cargo de serviços públicos, desconhecendo-se o que se passa no setor dito “clandestino”, onde só se entra quando há incêndio ou grave ocorrência. Nos EUA, os cuidadores vencem 12 a 13 dólares por hora; entre nós, em esmagadora maioria vencem salário mínimo, cerca de 4,1 euros por hora. Nos EUA, os sindicatos reivindicam uma dotação que permita 4,1 horas de pessoal por cada utente/dia; a aplicação desta regra entre nós levaria ao encerramento de 80% dos lares. Tudo o resto, o essencial se ajusta à nossa situação. Como sair daqui?
Só discutimos generalidades (mais formação, melhores salários, mais pessoal, menos pluriemprego, maior comparticipação pública, melhor articulação com a saúde, mais inspeção, maior exigência na qualidade dos serviços e menos mármore, mais conforto térmico, mais animação cultural, mais testes, mais higiene, menos antibióticos). E nenhum de nós tem na mão soluções mágicas, porquê?
Por não conhecermos a realidade, por termos adotado uma política de institucionalização louvando a beleza do edifício, cuidando pouco do que lá se passa. Por termos andado distraídos com a concentração do emprego no litoral, desprezando o envelhecimento no interior. Por descansarmos com a entrega do problema às Misericórdias e IPSS sem as ajudarmos com conhecimento técnico, aconselhamento permanente e boa regulação, consumindo a energia na negociação das tabelas. Por termos deixado a meio a rede de cuidados continuados (estamos agora a ver como são diferentes os lares dos cuidados continuados, onde a dotação e qualidade do pessoal se associou à prevenção da contaminação, tal como nos EUA). Por não termos avançado no conhecimento da situação, secundarizando o tópico nos projetos de investigação científica.
Se queremos tratar melhor os nossos mais velhos temos que estudar, conhecer o que se passa, ensaiar soluções, errar e corrigir. Não há tempo a perder.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico