Há um museu da gentrificação em construção por Nikolai Nekh

Ficção e realidade encontram-se. O museu é imaginário, a gentrificação real, tal como a exposição Surender, Surender, na galeria Balcony, do artista português de origem russa Nikolai Nekh.

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João Laia

O artista português, de origem russa, Nikolai Nekh anda a trabalhar num museu imaginário desde 2018. Deu-lhe o nome de Museu da Gentrificação, coleccionando indícios na forma de objectos que encontra na rua (estrados de camas, andaimes, cadeiras ou suportes de louça) e dos quais se serve para desenvolver novos mecanismos narrativos. “A certa altura imaginei um Museu Geológico a ser transformado num Museu da Gentrificação, no qual eram expostos os objectos despejados das casas em renovação”, conta-nos, explicitando a génese da ideia há três anos.

Mas não queria apenas recolher esses vestígios. “Queria também fazer um diário gráfico que registasse objectos e formas que não tivessem um propósito. Um registo de ideias. Então, comecei a fotografar esses objectos, com a ideia de fazer uma catalogação do material que vou encontrando.”

Ou seja, recolheu uma grande diversidade de objectos encontrados na rua, indícios das consequências da especulação imobiliária e da renovação de apartamentos para aluguer temporário, ao mesmo tempo que os fotografava e catalogava, devolvendo-os de seguida à rua.

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Entra-se no espaço da Balcony e somos confrontados com uma fotografia de grande dimensão, onde o próprio artista foi captado pelo curador João Laia, na piscina do último andar do Smallville Hotel, em Beirute, no Líbano DR

É a partir desses diferentes vectores que surge a exposição Surender, Surender, com curadoria de João Silvério, patente até ao fim do mês de Janeiro na galeria Balcony em Lisboa, constituindo mais um capítulo na implementação do projecto global Museu da Gentrificação, que já havia conhecido episódios transactos (como o ano passado com a exposição Três Cartazes Para o Museu da Gentrificação, na Mupi Gallery, dos Maus Hábitos, no Porto) e terá desenvolvimentos futuros. E que não constituiu um acaso num trajecto artístico onde a produção e distribuição de imagens que surgem das trajectórias do capitalismo, e das suas formas de representação, já havia sido abordada.

São exemplos disso Postcards From The City Raduhznyy, obra finalista do prémio BES Revelação em 2008, onde promovia um diálogo entre imagens dos subúrbios de Lisboa e memórias de uma cidade petrolífera na Sibéria, ou Archilles Heel, exposição de 2018 no Museu Contemporâneo do Chiado, onde questionava a relação entre matérias-primas para mover a indústria e os recursos energéticos disponíveis. “Desde o início que tinha a percepção que este projecto seria a médio ou longo-prazo”, diz a propósito do Museu da Gentrificação, “tendo começado com uma entrevista ficcional [publicada na revista WrongWrong] com a suposta directora artística do museu da gentrificação e indo ter consequências futuras, por exemplo, com a edição de um livro, o catálogo do museu.”

Para já, existe Surender, Surender. Entra-se no espaço da Balcony e somos confrontados com uma fotografia de grande dimensão, onde o próprio artista foi captado pelo curador João Laia, na piscina do último andar do Smallville Hotel, em Beirute, no Líbano. Pode nem sempre ser evidente a relação entre essa imagem e as restantes fotografias e esculturas (andaimes e estrados) dispostas na galeria, mas Nikolai Nekh explicita.

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Antes de existirem na escala apresentada na galeria, os objectos escultóricos foram produzidos como elementos ou maquetas minuciosas, que o artista usou para criar composições fotográficas que denotam grande realismo e rigor técnico DR

“Em Outubro de 2019 cheguei a Beirute, com uma bolsa da Gulbenkian, com o objectivo de fotografar uma maqueta de um museu porvir, que nunca será construído. Na altura em que estava a começar a Trienal da cidade teve inicio uma autêntica revolução, com uma série de convulsões que apanharam toda a gente de surpresa, após o governo ter anunciado uma taxa sobre as chamadas através do WhatsApp. É tudo cancelado e imensos artistas e curadores ficam retidos nos hotéis. O João Laia, que também estava lá, propôs-me passar esse fim-de-semana no hotel onde estava, que tinha uma piscina panorâmica no topo. E ali ficámos à espera que os tumultos passassem, com ele a tirar-me a fotografia à socapa.”

A fotografia traduz a memória de um momento de conflitualidade, mas não temos acesso a ele. Não existe um olhar sobre a cidade em revolução lá em baixo. Apenas vemos alguém solitário num lugar genérico que pode ser confundido com qualquer outro. Fora do campo de imagem ficam as alteridades, as diferenças, as tensões. Como acontece nas imagens das cidades gentrificadas, ou dos apartamentos para turistas, modelados de forma a rasurar todas as conflitualidades operadas naqueles lugares.

Essa forma, ideológica, de olhar o mundo, sente-o Nikolai Nekh também na maneira como a fotografia expositiva, no campo da arte contemporânea, ao nível do tipo de luzes ou de enquadramentos, é registada, fazendo um paralelismo com as fotografias de imobiliário. “É como se tivessem de corresponder a um padrão que só pode ser aquele e mais nenhum. As pessoas querem aquilo, não há muito para inventar.”

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Ele procura ir além dessa fórmula, dando enfoque ao processo de produção da imagem. Antes de existirem na escala apresentada na galeria, os objectos escultóricos foram produzidos como elementos ou maquetas minuciosas, que o artista usou para criar composições fotográficas que denotam grande realismo e rigor técnico. “A ideia foi pegar no código da fotografia de exposição e produzir algo totalmente falso”, esclarece. “Para mim, o importante, é que as imagens tenham um ar quase hipnótico. Não tem que existir uma ligação directa, ou simbólica, das formas. Não tem de haver tradução ou representação. São indícios apenas, que fazem parte de um determinado processo, mas que não tentam simbolizar nada.”

Um dia, ao regressar a casa, na zona de São Bento, em Lisboa, deparou-se com um estrado. “Levei-o para casa, fotografei-o, e comecei a pensar que o que seria interessante era fotografar os objectos em miniatura, nas composições que ia fazendo. Entretanto surgiram também os andaimes, que acabam por dar escala às imagens, permitindo outras leituras e surgiu a combinação desses elementos: as fotografias, os estrados e andaimes.”

O nome da exposição também surge a partir das implicações e coincidências que atravessam todo o seu trabalho. Um dia, ao chamar um transporte, via aplicação móvel, surgiu-lhe um condutor de turbante, do Bangladesh, de nome Surender, que haveria de se cruzar mais vezes com ele. “De tal forma que isso começou a ser motivo de brincadeira entre pessoas próximas que me interpelavam, aludindo a uma possível rendição, a partir da alusão do nome do homem. E foi até o [artista] Pedro Barateiro que acabou por dizer que seria um nome óptimo para a exposição, pelas muitas possibilidades de leitura. Rendemo-nos à gentrificação como uma evidência, ou somos obrigados a render-nos a ela? E temos alternativas? Rendemo-nos exactamente ao quê? Apesar de ser uma questão vivida de forma individual pelos habitantes de menores recursos, a verdade é que é o colectivo que é responsável pelo fenómeno. As leituras são inúmeras.”

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Ele está habituado a não deter o controlo, não só sobre as leituras passíveis de serem efectuadas a partir da sua prática, como da própria identidade. Tem nacionalidade portuguesa, mas o nome e origem russa continuam a causar estranheza. Ele, que nasceu em 1985, em Slavhansk-na-Kubani, cidade no sudoeste da Rússia, vive em Portugal desde os 13 anos. Hoje, diz, já pouco fala ou pensa em russo. Formou-se em Arte e Multimédia nas Belas-Artes de Lisboa, em 2009, e no ano seguinte fez parte do Programa de Estudos Independentes na Maumaus. Num percurso que soma uma dúzia de anos de exposição pública, nunca deixou de lado as experiências juvenis no país de origem, tanto pondo em contacto, no seu trabalho, a indústria do petróleo que empregava os seus pais na Rússia, como as transformações dos últimos anos de Lisboa.

“Quando trabalho sobre um tema, gosto que as coisas sejam implícitas, seja para implicar pessoas ou coisas, o que é diferente de as criticar. Todas as coisas que faço participam num qualquer processo criativo e têm de estar implicadas. Isso é absolutamente vital. Não opero com simbologias, mas sim com os vestígios. Neste caso com os indícios de gentrificação.”

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