Covid-19: se situação não melhorar, especialistas admitem mais restrições e até novo confinamento
Os efeitos do Natal parecem começar a sentir-se no número de novos casos, de acordo com alguns especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. Quase todos concordam que terão de se adoptar novas medidas nos próximos dias e repensar algumas das que já estão em vigor — como o encerramento de estabelecimentos comerciais a partir das 13h aos fins-de-semana. E regressar às velhas fórmulas, como um possível confinamento, não parece descabido. “Já conhecemos todas as medidas, o segredo é saber aplicar cada uma delas, na altura certa”, diz Filipe Froes.
Os 10.027 novos casos registados pela Direcção-Geral da Saúde no boletim desta quarta-feira podem abrir a porta a novas restrições e até mesmo a um novo confinamento. Esta é, pelo menos, a opinião de alguns especialistas da área da Saúde ouvidos pelo PÚBLICO, que não afastam também a hipótese de este aumento se poder dever aos contactos sociais estabelecidos na quadra festiva.
Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise covid-19 da Ordem dos Médicos, admite a possibilidade de ser preciso um novo confinamento, à semelhança daquele que aconteceu no início da pandemia em Portugal. E alerta mesmo que “outros países europeus já implementaram um novo confinamento e beneficiam de melhor situação epidemiológica do que Portugal nesta altura”.
“Mesmo admitindo que este número possa resultar de algum atraso de notificação nos dias anteriores, é evidente que é um valor extremamente preocupante”, avisa Filipe Froes, defendendo que o país está a viver um “paradoxo”. Porquê? “Infelizmente estamos a começar o ano com um recorde de novos casos, numa altura em que sabemos mais. Nunca soubemos tanto sobre o vírus, sobre como se transmite, temos mais meios de diagnóstico e novas abordagens terapêuticas, estamos a vacinar e temos mais novos casos”, faz notar.
Froes é “favorável a uma análise mais fina da situação, através dos resultados dos inquéritos epidemiológicos, de maneira a caracterizar o impacto das festividades, das viagens entre concelhos e da nova variante [do SARS-CoV-2] na demografia dos novos casos e internamentos”. É necessário perceber se a nova variante “se traduz por maior impacto nos grupos pediátricos”, uma vez que “parece estar associada a uma maior transmissão nas crianças, o que pode ter implicações nas medidas a adoptar nas escolas” e analisar também o “risco de transmissão aos grupos mais vulneráveis, por exemplo aos avós”. “E com base nessa informação ponderar todos os cenários, incluindo o confinamento”, defende.
“Já conhecemos todas as medidas, o segredo é saber aplicar cada uma delas, na altura certa, e esclarecer as pessoas com transparência sobre a necessidade de compreenderem o que está a ser feito, porquê e que resultados podemos esperar”, diz. Admite haver um aumento ainda maior de casos não só devido aos efeitos da passagem de ano, que podem ainda não estar reflectidos neste último número, mas também por causa de “cadeias secundárias” originadas tanto no Natal como no Ano Novo.
“Ligação ao Natal tem de ser feita”
No dia 30 de Dezembro, quando o país já registava uma ligeira subida nos números, o médico infecciologista António Silva Graça considerava prematuro traçar uma ligação directa com a quadra natalícia. Exactamente uma semana depois, esse já não é o caso.
“A ligação ao Natal pode ser feita e infelizmente tem de ser feita. E não é só por este valor: percebemos, mesmo naqueles dias em que havia menos notificação e se faziam menos testes, que o número [de casos] praticamente duplicou. Passou de 11 mil infecções para 21 mil. Nesta altura – e eu tinha sido cauteloso com o valor na passada semana – percebi que já tínhamos tempo para ver as consequências do que se passou no Natal. Este valor traduz tudo isso. Ainda tinha dúvidas nos últimos dias, mas agora é claro”, reitera.
Também o médico infecciologista julga ser uma necessidade decretar novas medidas restritivas para estabilizar a pandemia, embora assuma a sua discordância quanto a certas regras actualmente em vigor.
“Estes números traduzem um agravamento da situação sanitária. Para a controlar são precisas medidas de restrição da mobilidade que possam reduzir a transmissão do vírus. Sabemos que isso tem de ser feito, vão ter de existir medidas. Mas que medidas são essas? Serão as mesmas? Não estou totalmente de acordo com as que foram implementadas. Considero que o recolher obrigatório diário às 23h parece-me adequado. A medida de permitir a circulação e o funcionamento de estabelecimentos comerciais até às 13h não me parece adequada, pois leva a que as pessoas se juntem muito num período horário mais limitado. Tem de ser dada prioridade ao trabalho – menos gente a circular – e, por outro lado, garantir um número suficiente de transportes públicos, para garantir que as pessoas não se juntam demasiado quando as utilizam”, conclui.
R(t) pode determinar restrições
Também o epidemiologista e investigador do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto Milton Severo admite a possibilidade de um novo confinamento, se o índice de transmissibilidade – representado por R(t) – se mantiver nos valores actuais: “Para tomar a decisão não conta só o número actual de novos casos; temos de ter em conta o índice de transmissibilidade que, neste momento, ainda é inferior àquele registado em Março. Este índice diz-nos quantas pessoas em média cada pessoa infecciosa infecta – na 1.ª fase cada pessoa infectaria duas, agora está entre 1,27 a 1,57. Se o índice voltar rapidamente a ficar abaixo de 1, não creio que seja preciso confinar; agora, se se mantiver este valor entre 1,27 a 1,57 provavelmente aí pode ser necessário um novo confinamento.”
Questionado sobre se este máximo de novos casos deve fazer soar o alarme, Milton Severo ressalva que se deve “trabalhar com médias semanais” para acautelar questões “como testes que já estavam feitos e foram notificados com atraso” ou como “o efeito sazonal de haver mais testes à semana do que ao fim-de-semana”. Diz que é preciso analisar os dados por regiões, mas, ainda assim, admite: “Estávamos a descer ou em planalto, antes do Natal, e agora estamos a subir.”
Este investigador entende, porém, que ainda é preciso esperar para saber, ao certo, se este aumento se deve a contactos na quadra festiva: “Temos de provar é que é causa e efeito. E isso não sabemos. O que podemos dizer é que o aumento de contactos nesta época de Natal e Ano Novo poderá ter efeitos, mas pode haver outras razões, como adiamento de testes para mais tarde, para depois da quadra festiva. Temos de esperar, pelo menos mais uma semana, para ter a certeza que se deve ao Natal e ao Ano Novo.”
Milton Severo admite que “os números do Ano Novo possam não estar ainda contabilizados, porque [os casos] podem ainda não ter sido detectados” e observa que se “o Rt se mantiver entre 1,27 e 1,57 os números podem subir à razão de cerca 30%, ou mais, a cada cinco dias”. Por isso, frisa, “é importante cortar as cadeias de transmissão”, “testando rapidamente as pessoas com sintomas, os contactos suspeitos, e isolando-os”. Dessa forma, diz, “podemos conseguir começar a baixar os números”.
Confinamento não é unânime
Já Paulo Santos, médico e investigador, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigador do Cintesis (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde), diz que este número de novos casos acima dos 10 mil era “expectável”: “É o expectável e há que ter alguma calma neste momento. Pode haver algum acerto de contas, em relação a diagnósticos que ficaram por fazer no período festivo, porque muitas pessoas nem sequer queriam olhar para os sintomas com receio de estragar as festas de família.” Faz ainda notar que “quantos mais testes se fizerem”, mais casos haverá. “É ao número de internamentos, sobretudo nos cuidados intensivos, que temos de ficar atentos, para avaliar a gravidade da situação”, defende, acrescentando que é este aspecto, bem como a mortalidade, que merece atenção nos próximos dias. João Gouveia, presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, disse ao PÚBLICO que a região de Lisboa e Vale do Tejo, onde o Governo mandou suspender a actividade assistencial programada não urgente, aproxima-se “de uma situação crítica”.
Paulo Santos não é, porém, favorável a restrições muito severas nem a um novo confinamento, como aquele que aconteceu no início da pandemia. “Isso ia acabar com a economia e só iam aguentar os que têm capacidade económica”, diz, acrescentando que “saúde não é só ausência de doença”. Para este médico, é preciso “proteger os idosos e os que estão a morrer, internados”. Quanto a medidas, entende que ainda não se está a usar a máscara de forma eficaz e generalizada: “Temos de implementar o uso generalizado máscara de uma vez por todas. Passo na rua e vejo jovens juntos a conviverem sem máscara.”
Embora admita que possa haver alguns “acertos” nos próximos dias por causa da passagem de ano, para este investigador, o aumento de casos poderá estar mais relacionado com o período que antecedeu o Natal do que com os contactos familiares na quadra: “Este aumento pode estar relacionado com contactos no Natal, mas acho que os contactos foram mais quando as pessoas andaram às compras, com ajuntamentos à porta das lojas, do que na família, embora, se um entrar em casa [com o vírus], contagie os outros.”
“Estivemos em contracorrente"
Já para o especialista em Saúde Internacional Tiago Correia não existem grandes dúvidas quanto ao impacto do Natal no aumento de casos, relembrando que o país não seguiu o exemplo de alguns parceiros europeus relativamente às restrições na época natalícia.
“Estivemos em contracorrente em relação a países que tomamos por ‘desenvolvidos’ ou ‘referências’ – estou a pensar em concreto na Alemanha. Os países, de uma forma ou de outra, começaram a anunciar confinamentos para a altura do Natal e Portugal deixou a circulação de pessoas ao critério do bom senso de cada um”, resume o especialista, adiantando, porém, que do ponto de vista técnico a situação antes do Natal estava “estabilizada”, mas num planalto.
“Estávamos a estabilizar a situação. O que fazer com essa situação era uma decisão política. Agora é fácil dizer que foi a decisão errada, porque tivemos este boom. O PÚBLICO até fez uma peça em que se fez a comparação com quatro países e é possível perceber que Portugal parte ‘lá em cima’, ao contrário de outros países”, resume.
Relativamente a novos confinamentos, Tiago Correia pede calma, considerando que as medidas têm de ter objectivos concretos. Essa hipótese, contudo, não é afastada: “Pretendemos responder a quê? A minha resposta depende desta pergunta. Se o nosso objectivo for manter a resposta integral do Serviço Nacional de Saúde, direi que podemos estar muito perto de medidas mais restritivas. São essas as questões a justificar se precisamos de um novo ‘travão de mão’. Não é dizer em abstracto que precisamos de novo confinamento”