As vozes negras importam: como uma dobragem se tornou um caso
Em poucos dias, a versão portuguesa de Soul – Uma Aventura com Alma, o mais recente filme da Pixar, tornou-se polémica. O recurso a um actor branco para fazer a voz que, no original, é de Jamie Foxx, deu origem a uma petição que já conta com mais de 15 mil assinaturas.
Soul – Uma Aventura com Alma, o mais recente filme da Pixar, é a primeira obra deste importante estúdio de animação norte-americano já com 35 anos de história a centrar-se numa personagem negra. Joe Gardner, o protagonista, é um pianista de jazz na casa dos 40 que dá aulas de música, mas tem como sonho fazer vida nos palcos. Quando finalmente consegue uma oportunidade de actuar num clube, num quarteto com uma lendária saxofonista, cai num esgoto.
Esta é a premissa do filme realizado por Pete Docter e Kemp Powers que teve a sua estreia no Disney+ a 25 de Dezembro. Na versão original, a voz de Joe é de Jamie Foxx, tendo outros actores negros sido incluídos no elenco, como Angela Bassett ou Phylicia Rashad. Na génese de Soul estava a preocupação de representar adequadamente pessoas que, ao longo dos anos, o cinema de animação mainstream não tem tratado muito bem (como o ilustra a própria história da Disney, com os corvos de Dumbo e um filme proscrito como A Canção do Sul). Desta vez, a Pixar queria evitar a caricatura racista, tendo recorrido a vários consultores para garantir uma representação decente das pessoas negras.
Na Pensínsula Ibérica, porém, não parece ter havido idêntico cuidado. Para a dobragem portuguesa, escolheu-se Jorge Mourato, um actor branco, para o papel principal, ainda que algumas outras vozes tenham sido confiadas a actores negros; e, em Espanha, a voz do protagonista também é branca. A campanha de promoção do filme revelou por sua vez uma maior preocupação com a representatividade, com publicidades pagas para as redes sociais que recorreram a caras como as do bailarino Gonçalo Cabral, da atleta Patrícia Mamona, da fadista Mariza ou do artista Francisco Vidal.
As mesmas redes sociais tornaram-se entretanto palco de protestos em torno da escolha de um actor branco para interpretar este protagonista negro. E entretanto, no passado sábado, surgiu uma petição a pedir à Disney uma nova dobragem. Até à hora de fecho desta edição, já passou as 15 mil assinaturas.
Além disso, e apesar de a legendagem as respeitar, a dobragem retirou algumas referências a cores nos diálogos. “Branca de meia-idade”, por exemplo, passa a “senhora de meia-idade”, enquanto “música improvisacional negra”, num momento em que se explicam os contributos das pessoas negras para a cultura norte-americana, se transforma em “música de improviso”.
A Disney não respondeu em tempo útil às perguntas do PÚBLICO sobre estas questões. No último comunicado enviado à imprensa, antes da petição, lia-se: “Esforçamo-nos por ser inclusivos nos nossos castings, contudo reconhecemos que há trabalho a fazer e estamos comprometidos em diversificar os talentos nas nossas dobragens, independentemente da geografia onde actuamos.”
Entretanto, numa conversa com Rui Unas no formato online Na Casa do Unas, o actor convocado para o papel principal, Jorge Mourato, já admitiu que se o convidassem para fazer esta dobragem agora não aceitaria.
O que é uma voz negra?
É frequente as vozes das personagens negras assumirem nas dobragens sotaques carregados e exagerados, muitas vezes criações dos actores brancos que para elas são convocados — é algo que não acontece em Soul. A actriz Ana Sofia Martins, uma das assinantes originais da petição, já teve a experiência de lhe pedirem num casting um “sotaque africano”. “Quem mo pediu não se deu ao trabalho de me indicar de que país de África e muito menos o contexto social da personagem”, conta, confessando que “a falta de interesse ou até curiosidade" a deixou logo “de pé atrás”. “Acho que já todos percebemos que África não é um país”, continua. E que, ao contar uma história “que tem um peso gigante” para “uma etnia ou raça”, a voz tem “não só cor”, mas também “timbre, vida e um historial” que será mais bem “transmitido por quem consiga entendê-lo”, menciona.
Este caso de Soul tem, para Ana Sofia, “toda a importância, especialmente depois de um ano em que muitas vozes se ergueram para gritar que as vidas negras importam”. “Ora aqui está uma bela maneira de provar que não só importam como também respeitamos os profissionais negros”, continua. Diz que “ter actores pertencentes a minorias a trabalhar não pode ser visto como uma moda, tem de ser a regra”, assim como o contrário “parece ser a regra”.
O actor e apresentador Sílvio Nascimento fala de ver “dobragens feitas por actores brancos portugueses” a imitarem sotaques como o dele. “Na maior parte das vezes fazem-no de forma gozona, quando não falamos totalmente assim. Se fosse um africano a fazer, nós saberíamos, ouvimos as entoações exageradas, o sotaque a ser distorcido”, conta. “Porque é que não somos chamados?” Sobre Soul, diz que “a arquitectura do projecto não foi respeitada”. “Porquê?”, pergunta. “Não nos vêem noutros lugares, não nos podem tirar aqueles que são para nós, isso é quase apropriação cultural, é um crime”, remata.
Marco Mendonça, outro actor, pergunta, sobre os sotaques: “Se a intenção é fazer um sotaque, por que não também chamar um actor para quem o sotaque já seja uma coisa natural?”. Não que fique incomodado com eles. “A minha questão é: num mundo justo, para isso acontecer, para fazer um sotaque de uma personagem que seja associada a um sotaque africano, para mim seria mais aceitável se já tivesse havido oportunidades efectivas para pessoas que tenham mesmo aquele sotaque”, responde.
Para ele, a questão de Soul "não é propriamente a voz falada em termos físicos, não é a voz que o nosso corpo emana, mas sim uma espécie de voz que é uma herança de uma luta que vem de há muito tempo”. Continua: “É uma voz que finalmente ganha corpo e ganha protagonismo e destaque num filme feito para dar protagonismo a uma personagem negra”, algo em que Portugal falhou. Diz que é “subjectivo” a voz ter ou não cor. “As revoluções têm cor e as pessoas também. Se este filme representa uma certa e cor e se essa cor não se vê representada nas vozes de quem conta essa história, sinto que acabamos por ser mais uma vez deixados de parte.”
O músico Pedro Coquenão, ou Batida, impulsionador da petição, quer dar a palavra mais a actores negros para falarem por si, mas explica que só o facto de a petição ter posto pessoas a falar deste assunto é bom. O final feliz seria a Disney avançar mesmo para uma nova dobragem. Quer que crianças “oiçam a diferença nas vozes ou vejam a diferença nas pessoas que fazem as vozes”, quando virem reportagens sobre quem deu voz às personagens, e sintam que há espaço para “pessoas racializadas” como elas fazerem este tipo de trabalhos. É, mais do que uma questão de sotaque, de representação. Para ele, a voz pode não ter cor, “mas a pessoa que a está a fazer tem”.
No ano passado, como Batida, Coquenão fez um DJ set num festival online de celebração do Dia de África organizado pelos Roots, cujo Questlove é não só uma das vozes do filme (Pedro Pernas, que não é negro, fez a personagem dele por cá), mas também um dos consultores que a Pixar contratou. Enviou para a equipa da banda informações sobre toda esta questão, algo que acharam estranho.
Há dois anos, quando saiu Homem-Aranha: No Universo-Aranha, de entre, outros, Peter Ramsey, houve uma preocupação na representação nas dobragens. Matamba Joaquim foi uma dessas vozes. O actor diz que o normal é “os brancos contarem as vozes dos negros”. “Acredito que num mundo em que ainda há pessoas que morrem pela cor da pele a questão da representatividade importa. Seguimos numa sociedade que continua a invisibilizar os corpos e as vozes negras”, comenta.
Para Matamba, o tópico da voz ter ou não cor “afasta o debate” do essencial, que é não se ter seguido “a premissa original da Pixar em valorizar pela primeira vez um protagonista negro e a sua história”. Portugal, adiciona, “perdeu uma oportunidade” no final de um ano “agitado por violências racistas e marcado pelo desenvolvimento de movimentos sociais de consciencialização racial”. A voz “não ter cor”, parece-lhe, é algo relacionado com “a cegueira do privilégio branco”, e lembra que “nem todos” podem afirmar “não ouvir cor”, como nem todos podem afirmar “não ver cor”.