E agora, Europa?
A aprendizagem ganha pela Alemanha mudou a Europa. A todos os outros membros da UE, em particular aos portugueses, cabe agora a necessidade de compreender onde estamos e que papel ambicionam ter como cidadãos e como sociedade, num Mundo que se discute entre os EUA e a China.
O ano que passou marcou uma ruptura importante com o Mundo a que nos tínhamos habituado. Não foram são só os múltiplos efeitos da pandemia, com a descoberta das falhas dos sistemas de saúde, com a alteração nas relações de emprego, ou ainda, como nos podemos organizar para tomar decisões dispensando viagens e hotéis. Também a nível da governação assistimos à alteração radical da natureza das políticas fiscais, aceites agora como instrumento indispensável para fazer face aos problemas da economia. A supremacia da ideologia liberal – que ganhou o Mundo nos anos 80 – dá agora, de novo, lugar ao intervencionismo público como garante do equilíbrio das sociedades. Em poucos meses, assistimos a mudanças que normalmente levariam uns anos a acontecer. Muita coisa se alterou. Até a grande potência da democracia, os Estados Unidos, sofreu com as investidas desarticuladas, mas insistentes, de um líder inculto e corrupto. Com os Estados Unidos a descerem na escada da glória, o ano que passa marca o surgimento de uma nova China. A simpática potência oriental, exemplo mágico do milagre do desenvolvimento económico, abandona em 2020 o perfil de ponderação e modéstia que construiu ao longo das últimas décadas com Deng Xiaoping. A nova China é agora uma potência agressiva, apressada em encontrar a equivalência entre o seu recente poderio económico e a sua força política e militar, que quer exercer sem complexos, tanto internamente como na cena internacional.
Também a natureza política da Europa foi atingida de maneira tal que só nos próximos anos conseguiremos descortinar o impacto deste golpe. Depois de décadas de marasmo europeu, a União Europeia perde o Reino Unido, para logo a seguir se reinventar como entidade dotada de interesses comuns: (1) Decide emitir dívida comum para suportar as dificuldades de alguns dos seus membros; (2) Enuncia princípios e objectivos claros de política económica comum e (3) Dá os primeiros sinais de protagonismo internacional autónomo, dispensando a muleta dos Estados Unidos. Tudo isto são alterações de enorme significado. E todas estas soluções foram arquitectadas e consensualizadas em poucos meses, sob a agora esclarecida liderança alemã de Angela Merkel. Vale a pena pensar no que está a acontecer.
O acordo do “Brexit”, fechado à 25.ª hora e uns minutos antes do Natal, resolve no imediato um constrangimento maior que envenenava o ambiente na Europa há mais de quatro anos. Embora as alterações constitucionais sejam normalmente tomadas em resultado de maiorias qualificadas, o referendo de 2016 levou, por uma pequena margem de votos, a alterar os fundamentos constitucionais do Reino Unido e da Europa. Sem refazer a história atribulada destes quatro anos de negociações, o acordo da 25.ª hora parece surgir como uma vitória dos defensores do “Brexit”. Deixando de pertencer ao clube, o Reino Unido mantém o acesso ao Mercado Comum Europeu, sem taxas e sem quotas, oferecendo em contrapartida algo aos pescadores comunitários, numa equação de milhares de milhões para as mercadorias contra alguns tostões para as espinhas, num acordo que é obtido sob forte inspiração alemã. De facto, os interesses industriais alemães na Grã-Bretanha são enormes e o seu futuro seria posto em causa com uma fronteira física e fiscal. Acresce que as cedências de última hora da UE foram várias, incluindo até a dispensa do mecanismo que a UE tinha previsto para se proteger de acções e políticas lesivas da concorrência. Salva que foi a indústria alemã, será que afinal ganhou o “Brexit"?
Apesar de estarmos no início de um longo filme cujo desfecho irá sendo clarificado ao longo do tempo, o que se percebe para já é que a UE manteve a liberdade do movimento de mercadorias, onde tem uma enorme vantagem, e põe fim à liberdade de movimentos nos serviços que, para a Grã-Bretanha, representam o grosso das suas exportações. Descontando o fogo-de-artifício nacionalista, o resultado neste momento é óbvio, e é claramente a favor da UE. Com a enorme vantagem de se ter posto fim a uma desgastante guerra de nervos, recuperando para a convivência uma sociedade cuja História está intimamente intricada com o Continente e onde metade dos seus cidadãos é a favor da UE. Tivesse a estratégia negocial de Merkel falhado e a Presidência Portuguesa do Conselho Europeu teria de tentar resolver o que, à partida, parecia insolúvel.
Quanto aos impactos da pandemia, estes não foram só negativos para a Europa. De um início de ano caótico, onde se procurou protecção nas fronteiras nacionais, a liderança executiva da Comissão Europeia, com o suporte da Alemanha e da França, conseguiu, mesmo sem que isso constasse dos Tratados, tomar a direcção e gerir aspectos importantes da crise sanitária, dando sentido ao valor da cidadania europeia. Foi um resultado extraordinário, a que se veio a juntar um ainda maior: a criação de um Fundo gigante para apoio ao desenvolvimento das regiões afectadas pela crise. Um Fundo financiado por dívida comum europeia. Esta era, recorde-se, uma solução aberrante e completamente fora da equação, em virtude dos preconceitos alemães. Mas afinal, graças à iniciativa do Ministério das Finanças alemão e à forte direcção política da chanceler Merkel, o que era impensável acontece como a primeira medida federal de política fiscal da União. Sendo ainda uma medida avulsa, a sua relevância é absolutamente gigantesca para o futuro da União. A forma magistral como a chanceler navegou as dificuldades de consenso dos 27 países até à aprovação definitiva já na recta final da Presidência Alemã foi também extraordinária, embora com algum custo de cedências aos populistas húngaros e polacos que, sendo contra a Europa democrática, beneficiam dos subsídios que dela recebem. Tivesse a estratégia negocial de Merkel falhado e a Presidência Portuguesa do Conselho Europeu teria de tentar salvar o que, à partida, parecia perdido.
Quando já nada mais parecia poder acontecer de relevante no palco comunitário em 2020, somos surpreendidos com o fecho de um importante processo negocial com a China – que se arrastava há sete anos – para a garantia de maior protecção e equidade aos investimentos da UE. À partida, poucos observadores esperavam novidades nesta matéria até porque, com a guerra comercial aberta pela administração americana contra a China, não faria muito sentido a Europa meter-se em bicos dos pés. Aparentemente, não havia pressa nenhuma, em especial porque a futura administração Biden tinha já pedido explicitamente à Europa que aguardasse até que se pudesse construir uma frente negocial comum, possível quando Trump estivesse confinado ao golfe de Mar-a-Lago. Mas não foi isso que aconteceu e por muito irritada com a Europa que tenha ficado a equipa de Biden, a Alemanha pressionou pela concretização de um acordo entre a UE e a China. Porquê? Porque mesmo que a vitória de Biden abra caminho à normalização das relações entre a Europa e os Estados Unidos e permita constituir uma frente de potências democratas face ao inquietante poder da ditadura de Pequim, Berlim olha com apreensão os 74 milhões de votos que os americanos depositaram religiosamente em Trump, o inimigo da Europa. Para a Alemanha de Merkel, o tempo de uma Europa que descansa na força benevolente dos Estados Unidos está mesmo ultrapassado. Mesmo com Biden e com uma administração com quem se partilha o entendimento sobre a natureza dos problemas do Mundo, para a Europa já não há outra via que não seja tomar conta de si e avançar com as suas próprias forças. O assunto do acordo com a China ficou resolvido e o significado deste “Grito do Ipiranga” europeu, protagonizado pela chanceler, está ainda para se perceber no que vai dar. Tivesse a estratégia alemã sido outra e a Presidência Portuguesa do Conselho Europeu teria de tentar empurrar este difícil e perigoso dossier.
Fechadas magistralmente todas estas questões pela Presidência Alemã, a Presidência Portuguesa vai ter direito a um período de calmaria, pelo que até o primeiro-ministro português concluiu que as suas prioridades não passam pela Presidência do Conselho Europeu e delegou no ministro dos Negócios Estrangeiros.
Há agora tempo para olhar com alguma calma para o futuro. A Europa, projecto sonhador de paz e progresso que visava salvar uma comunidade que se havia autodestruído durante séculos, arranca agora em força para uma velocidade maior. Mas mantém fragilidades extremas, pois bastam umas eleições em França ou na Itália para que Putin possa somar à saborosa vitória no “Brexit” o descalabro final da União Europeia. Neste caminho cheio de perigos, os que acreditam nas virtualidades da Europa entenderam perfeitamente que as estratégias nacionais do séc. XIX são incompatíveis com o exercício da soberania no séc. XXI. Angela Merkel levou tempo a perceber isso e também a concluir que a defesa dos interesses alemães não se fazia nem na contabilidade do Bundesbank nem com a jurisprudência do seu Tribunal Constitucional. Essa aprendizagem ganha pela Alemanha mudou a Europa. A todos os outros membros da UE, em particular aos portugueses, cabe agora a necessidade de compreender onde estamos e que papel ambicionam ter como cidadãos e como sociedade, num Mundo que se discute entre os EUA e a China.