Idosos vacinados na primeira fase? Coordenador da comissão de vacinas covid-19 rejeita rever critérios
Ordem dos Médicos recorda que taxa de letalidade por covid-19 acima dos 80 anos ascende a 13,6% e defende a mudança dos critérios de vacinação. Mas o coordenador do grupo de trabalho que delineou a estratégia da operação não concorda com esta recomendação.
A Ordem dos Médicos (OM) quer que os critérios de vacinação contra a covid-19 sejam alterados de forma a que a idade seja considerada um factor prioritário e os mais velhos possam ser imunizados já nesta primeira fase da operação, lembrando que a taxa de letalidade com covid-19 acima dos 80 anos em Portugal é actualmente de “13,6%” enquanto na faixa entre os 50 e os 59 anos é de “cerca de 0,3%”.
O bastonário Miguel Guimarães e os elementos do gabinete de crise da OM para a covid-19 defendem, em nota divulgada esta sexta-feira, “uma mudança dos critérios de operacionalização dos grupos prioritários que também privilegie o factor idade”, o que “facilitaria a identificação dos grupos-alvo e permitiria reduzir a mortalidade, morbilidade e pressão nos serviços”.
Assim, sugerem, além dos profissionais de saúde e dos residentes em lares, devem igualmente ser vacinados logo nesta primeira etapa os idosos que são “acompanhados directamente pelas famílias”. Da mesma forma, acham que “o factor idade e doenças associadas deveria ser considerado na selecção inicial” dos profissionais de saúde. Esta posição já estava expressa num ofício que o bastonário e o gabinete de crise enviaram para o Ministério da Saúde em 21 de Dezembro.
Em Portugal, os grupos prioritários nesta primeira fase da vacinação são os profissionais de saúde directamente envolvidos nos cuidados a doentes, além dos funcionários e dos residentes e lares e os internados em unidades de cuidados continuados. Estão também incluídos nesta etapa inicial os profissionais das forças armadas, das forças de segurança e de serviços considerados críticos. Outro grupo prioritário é constituído pelas pessoas com 50 ou mais anos com pelo menos uma das seguintes patologias: insuficiência cardíaca, doença coronária, insuficiência renal grave, doença pulmonar obstrutiva crónica ou doença respiratória crónica com necessidade de suporte ventilatório e/ou oxigenoterapia de longa duração.
As pessoas com 65 ou mais anos com ou sem doenças que não tiverem sido vacinadas na primeira fase na segunda fase serão imunizadas na segunda etapa que se prevê que arranque apenas em Abril. Esta estratégia é diferente da seguida por outros países, como por exemplo a Alemanha e Itália, onde os idosos com mais de 80 anos foram considerados prioritários. Mas também há países onde a a estratégia é semelhante à de Portugal, nomeadamente a França, que colocou os idosos com mais de 75 anos apenas na segunda fase.
O coordenador da task force para o plano de vacinação contra a covid-19, Francisco Ramos, discorda da recomendação da OM. “Não concordo com a necessidade de revisão dos critérios, uma vez que o factor idade já está expresso [no plano]. Os residentes em lares são em regra os mais idosos e é no grupo de pessoas com mais de 50 anos e as patologias identificadas que ocorrem mais mortes e doença severa”, acentua Francisco Ramos. Já o Ministério da Saúde recorda que “os grupos prioritários foram definidos com base em critérios científicos e integrando variáveis de risco, aliás, alinhados com a maior parte dos países europeus” e afirma que o seu foco “é garantir que o processo de vacinação decorra sem intercorrências de maior”.
Notando que “a idade é um factor de risco para a mortalidade com covid-19”, Filipe Froes, pneumologista que coordena o gabinete de crise para a covid-19 da OM, argumenta que a estratégia baseada na idade é “muito mais fácil de operacionalizar” e alega que identificar as pessoas com 50 ou mais anos e as quatro patologias definidas no plano vai ser complicado e vai sobrecarregar os médicos até porque estas acenderão não às 400 mil estimadas mas sim “a cerca de um milhão”. Tendo em conta a taxa de letalidade (proporção de mortes em relação aos casos diagnosticados), "será necessário vacinar sete pessoas a partir dos 80 anos para prevenir uma morte, enquanto entre os 50 e os 59 anos” é preciso imunizar "300 para prevenir uma morte”, compara.
Ainda antes desta posição da Ordem dos Médicos ser divulgada, o PÚBLICO ouviu várias pessoas sobre esta matéria, depois de o médico infecciologista António Silva Graça ter defendido que os mais idosos que não estão em lares também deveriam ser vacinados na primeira fase e de ter sugerido que o Ministério da Saúde podia rever esta decisão. Silva Graça pensa que a prioridade dada aos profissionais na linha da frente faz sentido mas acha que provavelmente foi o critério de “facilidade de execução da vacinação” que “preponderou” na escolha da estratégia nacional. Defende, porém, que as pessoas a partir dos 75 anos - ou, se tal não for possível, os cidadãos acima dos 80 anos que não estão em lares e não têm uma das quatro patologias definidas como prioritárias - sejam vacinadas na logo na primeira fase porque neste último caso a taxa de letalidade é “quase “dez vezes superior à da totalidade da população.
Os dirigentes da Associação dos Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe) têm um entendimento diferente. Notando que “a velhice não é uma doença”, a presidente da APRe, Maria do Rosário Gama, pergunta: “Por que é que uma pessoa de 80 anos saudável deve ser vacinada em primeiro lugar?”. “Mais do que a idade, o critério deve ser a doença”, sustenta. Mas defende que o leque de doenças contemplado na primeira etapa devia ser aumentado, incluindo, por exemplo, a diabetes e a obesidade.
“Não podíamos também, depois de termos defendido ao longo da pandemia que os idosos não deviam ficar confinados e que não podia haver discriminação com base na idade, vir agora defender que os idosos saudáveis fossem vacinados em primeiro lugar”, acrescenta. “A idade avançada não é uma variável independente pois, só por si, não é um desses factores de risco. Apenas é mais frequente as pessoas mais velhas terem comorbilidades que aumentam o risco, como doença cardiovascular por exemplo. Esses casos estão contemplados na primeira fase”, sintetiza uma médica que integra a direcção da APRe.
“Esta discussão já é um pouco tardia”, enquadra o presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, organismo que não foi consultado para a definição dos critérios de priorização. Mas Jorge Soares considera que é questionável a inclusão de polícias, por exemplo, nos primeiros grupos prioritários, à frente dos idosos saudáveis com idade mais avançada.
Ponderando que o plano “está bem elaborado no início”, o presidente da Associação Nacional de Gerontologia Social, Ricardo Pocinho, não deixa de lembrar, porém, que uma parte substancial das mortes por covid-19 ocorre na população com mais de 80 anos. E também questiona a inclusão de alguns profissionais nos grupos prioritários: “Por que razão vou, por exemplo, vacinar primeiro os militares?”.