O avanço de tecnologias como a tecnologia de cadeia de blocos (diga-se, blockchain) acentuou esforços direccionados ao desenvolvimento de métodos de pagamentos baseados em tokens. Este tipo de sistema está agora a ser seriamente ponderado por governos, empresas e até individuais, nomeadamente para a produção de uma moeda digital gerida por bancos centrais (central bank digital currency em inglês, ou CBDC).
Num artigo anterior, expus alguns dos perigos relacionados decorrentes da utilização de uma criptomoeda global, gerida por entidades privadas, nomeadamente a Libra. A Libra foi, talvez não surpreendentemente, enfrentada por reguladores, tendo de alterar a sua missão e até a sua marca – é agora designada de “Diem”. Algumas das razões pelas quais os reguladores enfrentaram a Libra incluem a possibilidade de esta perturbar o sistema financeiro em vigor, promover lavagem de dinheiro e de ser um competidor directo das moedas fiduciárias, como o dólar.
No entanto, o Diem não é o único projecto que procura criar uma moeda digital (semi) regulada. Projectos que abrangem a área das CBDC querem providenciar os seus utilizadores com uma versão “tokenizada” de moeda fiduciária, como o euro digital ou o dólar digital. Em comparação com as criptomoedas, uma CBDC seria gerida por uma autoridade central (isto é, um banco central) e portanto seria regulada à luz da legislação actual.
Num artigo científico datado de 14 de Dezembro deste ano, Towards a Two-Tier Hierarchical Infrastructure: An Online Payment System for Central Bank Digital Currencies, a Visa, uma gigante das rede de pagamentos, propõe um sistema de pagamentos offline, que seria a infra-estrutura das CBDC. A ideia deste sistema é permitir pagamentos de pessoa para pessoa, sem terceiros envolvidos, num ambiente que até pode nem ter conexão à Internet. Isto permite fazer coisas muito interessantes.
Imagine o leitor que o Banco de Portugal emite um “escudo digital” que representa, por exemplo, dívida pública. Este token, que tem carácter legal em Portugal, pode ser usado para promover iniciativas e projectos de cariz tecnológica a nível municipal, regional ou nacional, e dinamizar o comércio local. Pode até criar modelos de negócio completamente novos.
Há muita flexibilidade neste tipo de modelo, porque não é necessariamente o Banco de Portugal o incumbente de gerir a moeda. Pode ser uma instituição privada. Ou uma instituição pública. Apesar de bastante promissora, esta tecnologia tem alguns desafios:
- É necessário ter um conjunto de entidades que emitem CBDC e que são responsáveis pela criação e manutenção das carteiras digitais: quem serão? Quem decide quem serão?
- Se a nossa carteira digital for comprometida, em princípio o dinheiro poderá ser perdido : que mecanismos existirão para proteger o utilizador? Como é que esta infra-estrutura irá interoperar com sistemas existentes, centralizados e descentralizados? Em particular, irá estar integrado com criptomoedas (por exemplo, a bitcoin)?
- Naturalmente irá estar integrado com redes de pagamento a que estamos habituados (como Visa), mas quer dizer isto que podemos trocar um euro digital por um dólar, e vice-versa?
Não tenho resposta a estas perguntas, mas é da minha opinião que a interoperabilidade será um factor decisivo no crescimento e sucesso desta nova tecnologia, de maneira semelhante ao que observamos com a estandardização da Internet.
A realidade de um euro-digital está cada vez mais próxima, providenciado um complemento às criptomoedas. Ainda há, no entanto, muito trabalho a ser feito. Grande parte deste processo inclui envolver os reguladores, economistas e bancários (apenas mencionando alguns), para que Portugal não fique à beira desta revolução tecnológica. Estou expectante que 2021 e 2022 trarão tecnologias bastante entusiasmantes, que certamente mudarão, de maneira radical, a maneira como vemos o dinheiro, os negócios e a própria sociedade.