Relatos da caixa de um supermercado: dedos
Não tomar o crescimento do número de casos de xenofobia contra brasileiros, o aumento dos discursos de ódio nas redes sociais e o racismo como questões sistémicas insufladas pelos posicionamentos de André Ventura e os perigos que esses causam aos projectos democráticos é deixar que o vírus se espalhe por entre os nossos corpos, sem distanciamento social e fins-de-semana em casa.
A mão em luvas, o frio do Inverno ou das geladeiras. Produtos de limpeza, sabão, detergente, álcool em gel. Para além dos cuidados com o rosto, as mãos de um vendedor de legumes passam por muitos choques nesse cenário pandémico. E algo que não falei aqui: a minha esposa trabalha comigo no mesmo mercado. Os nossos olhares confortam-nos no meio daquelas máscaras, verduras e horas em pé.
Mas os dedos dela acabaram por não aguentar: o anelar, que guardava a nossa aliança, misturou a alergia com a falta de espaço causado pelo anel e virou adereço no meio ao inchaço. Temos muitos amigos médicos e conseguimos com eles a orientação que deveríamos procurar intervenção médica. Fomos ao Hospital de Cascais, passámos por toda aquela rotina comum de emergências: fila para triagem, fila para atendimento, fila para exame, fila para voltar para o atendimento. Fiquei à espera da saga dela. No final ela volta, com o dedo mais inchado, chorando e ainda com o anel. E aqui segue a conversa final com o médico:
- Olha, Mariana, não temos aqui a ferramenta para tirar o seu anel. Amanhã, procura um ourives.
- Mas, Doutor, não pode piorar?
- Pois, pode. Dorme com a mão para cima.
Não receitou nenhum remédio, os nossos amigos médicos indicaram negligência. Prefiro pensar que é a loucura acometida pelo coronavírus que faz com que o médico não veja importância no caso. Afinal, o juramento de Hipócrates não fala nada sobre dedos. Mas é impossível não criarmos um paralelo político. Pelo menos para mim.
O Brasil da destituição de Dilma e do crescimento assustador do ideólogo pró-tortura Jair Messias Bolsonaro teve na classe médica uma base muito importante de apoio. Os “doutores” fizeram campanha, foram para as ruas e usavam de sua posição de privilégio para abertamente elogiarem as falas e posturas do actual presidente – isso vem mudando com a pandemia. No Brasil, os médicos, principalmente no Sudeste, colocam-se numa posição elitista e extremamente conservadora.
Fica aqui a pergunta: isso também está a acontecer aqui? Será que o não-atendimento da minha esposa teve no entrave linguístico motivação?
No caminho de volta do não-atendimento, passámos por um cartaz do Chega. A cara de André Ventura esboçava um quase sorriso, como que aplaudindo toda a situação que estávamos a viver. Confesso que estou com medo, medo de que Portugal não tenha aprendido com os erros brasileiros e que caia na facilidade do discurso proposto pela extrema-direita. O problema são sempre os outros, o inimigo, aqueles que nos afastam de um passado glorioso. Medo de ver a direita “liberal” misturar-se com o avanço do Chega, ao invés de tomar medidas contra as falas preconceituosas, negacionistas e ultranacionalistas.
Assusta-me a esquerda não se unir para blindar esse crescimento e o fantasma de uma gerigonça de direita. Não tomar o crescimento do número de casos de xenofobia contra brasileiros, o aumento dos discursos de ódio nas redes sociais e o racismo como questões sistémicas insufladas pelos posicionamentos de André Ventura e os perigos que esses causam aos projectos democráticos é deixar que o vírus se espalhe por entre os nossos corpos, sem distanciamento social e fins-de-semana em casa.