As portas de Jano
No ano que agora vai ter início, a nova face de Jano poderá avaliar o sucesso do programa de vacinação. Ainda verá máscaras nas ruas, mas esperemos que ainda presencie o regresso dos abraços, das viagens e das férias.
Depois de um deus nascer, outros morreram. Nos nossos dias, Apolo já não tem “loureiro profético nem fonte melodiosa, a água que fala calou-se”, como a Sibila vaticinou em Delfos. No entanto, a designação do primeiro mês do calendário conseguiu ser mais imortal que a divindade que lhe atribuiu o nome – o deus Jano. Este era o deus romano da transição e da mudança, do início e do fim. Apresentava duas faces, voltadas em direções opostas, contemplando, simultaneamente, o passado e o futuro. Era o deus que simbolizava a passagem de um ano para outro. As suas duas faces encontram-se, agora, voltadas para 2020 e 2021, respetivamente.
A face de Jano voltada para 2020, decerto dirige o olhar para Oriente, na direção de Wuhan, a cidade chinesa onde, no ano anterior, havia tido início a pandemia de covid-19. No mercado daquela cidade, além de um mar de gente e de produtos alimentares conservados em duvidosas condições encontraria toda a sorte de animais – coelhos, cobras, raposas, crocodilos. Descobriria até a existência um animal exótico, com a pele coberta de escamas – o pangolim. Apesar de amigável aparência, poderá ter sido este animal o hospedeiro intermediário, na transmissão do morcego para o ser humano, de um vírus coroado e mortal – o SARS-CoV-2.
Se Jano tentar alcançar um horizonte temporal mais distante, conseguirá ainda ver, à distância, outras epidemias: a síndrome respiratória aguda severa (SARS), em 2002-2003; a gripe A, em 2009-2011; e a síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS), em 2012. Mais próximo de nós, já várias entidades, como Bill Gates ou a Organização Mundial da Saúde tinham alertado para a possibilidade de ocorrência de uma pandemia à escala global.
A face de Jano de 2020 confirmou o cumprimento dessa sibilina projeção, ao assistir ao avanço da nova pandemia pelo mundo – Tailândia, Japão, Estados Unidos da América, Europa e, por fim, também Portugal. Em poucos meses, a covid-19 alastrou pelo globo e depressa alcançou proporções descontroladas – estava aberta a caixa de Pandora. Era urgente dar início ao combate da pandemia. Rapidamente se sequenciou, pela primeira vez, o genoma do SARS-CoV-2, permitindo desenvolver testes de deteção do vírus por biologia molecular. Mais tarde apareceriam os testes serológicos, para avaliação da resposta imunitária à infeção.
Os hospitais abriram as portas, como, o templo de Jano na Roma antiga que, em tempo de guerra, mantinha os pórticos abertos de par em par. Na realidade, a doença não daria tréguas. As pessoas confinaram-se em casa, os sorrisos esconderam-se nas máscaras, desinfetaram-se as mãos com álcool-gel. As ruas ficaram vazias. Veio a primeira vaga e, no mesmo ano, uma segunda. O coronavírus infetava doentes, invadia habitações, separava famílias. O número de pessoas infetadas ultrapassaria os 80 milhões de casos identificados. Mais de 1,7 milhões de pessoas não conseguiria resistir. É, aliás, impressionante como um ser de tão reduzidas dimensões (60-140 nanómetros) se encontra na origem de efeitos tão devastadores.
Estes foram os trabalhos e os dias de 2020. Jano, um deus tão antigo, já há muito tempo não presenciava tempos assim. Foi, pois, com esperança, que assistiu à chegada da vacina contra covid-19, fruto da resposta célere e coordenada de vários países e instituições no combate à pandemia. Num momento histórico, a vacina foi distribuída, em uníssono e a um tempo, a todos os Estados-membros da União Europeia. No ano que agora tem início, a nova face de Jano poderá avaliar o sucesso do programa de vacinação. Ainda verá máscaras nas ruas, mas esperemos que ainda presencie o regresso dos abraços, das viagens e das férias. Se assim for, podemos começar a assistir, em 2021, ao encerramento das portas de Jano para a covid-19.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico