Ministério Público começou a investigar matança de veados e javalis
Acontecimentos remontam há já dez dias, altura em que um grupo de caçadores espanhóis abateu 540 animais em herdade na Azambuja.
O Ministério Público anunciou esta segunda-feira que abriu um inquérito à matança de veados e javalis na Herdade da Torre Bela, na Azambuja. Os factos remontam há cerca de dez dias, mas só agora a Procuradoria-Geral da República revelou que a investigação começou.
Um grupo de 16 caçadores espanhóis deslocou-se à herdade para levar a cabo uma montaria, tendo matado, segundo a empresa que organizou o evento, a Monteros de La Cabra, 540 animais. Na montaria esteve presente um veterinário português da zona de Elvas. O PÚBLICO tentou contactá-lo ao longo dos últimos dias para perceber em que moldes teve lugar a sua participação, mas não obteve resposta. Segundo o bastonário dos veterinários, Jorge Cid, este profissional não é passível de ser responsabilizado pelo sucedido, uma vez que não é a ele que cabe a colocação dos selos nos animais para efeitos de controlo das espécies, mas sim aos gestores da zona de caça.
A proprietária da Torre Bela emitiu, na passada quinta-feira, um comunicado onde descarta qualquer responsabilidade no alegado abate dos 540 animais e diz que está a colaborar com as autoridades para a descoberta da verdade.
Entretanto, segundo a TVI, a Monteros de La Cabra já tinha efectuado uma razia do mesmo género na herdade da Contenda, no concelho de Moura, há cerca de cinco anos. O presidente da empresa municipal que gere a propriedade e o responsável pela Associação Nacional de Caça Maior garantiram à estação televisiva que a firma espanhola quase dizimou as espécies de caça ali existentes, razão pela qual foi afastada da Contenda. A isso mesmo já tinha aludido de resto na passada semana o Clube Português de Monteiros — Associação Nacional de Caça Maior, ao condenar a montaria que teve lugar “sob a égide de uma organização espanhola tristemente conhecida em Portugal por idênticos desmandos no passado”.
Porém, anteriores administradores da herdade da Contenda vieram entretanto desmentir os seus sucessores. Dizem que a firma espanhola “não organizou nenhuma montaria na Contenda, nem teve qualquer contrato com a empresa municipal e que estas caçadas “sempre foram organizadas pela empresa municipal Herdade da Contenda” e desafiam a actual administração a divulgar os números relativos às jornadas de caça (número de caçadores e peças abatidas por espécie) desde a criação da empresa, “incluindo também outros abates verificados sob a responsabilidade da empresa”.
“Em nenhuma das montarias realizadas nesse período foram abatidos animais além do previsto em edital, sendo falsa a afirmação de que se verificou alguma situação de dizimação do efectivo presente na herdade”, concluem os antigos administradores.
A informação divulgada pela Procuradoria-Geral da República sobre o arranque da investigação é minimal: “Confirma-se a instauração de um inquérito que corre termos no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa Norte (Alenquer)”. Não refere em que data foi aberto o inquérito, que crimes podem estar em causa nem se já foram constituídos arguidos.
Porém, na passada semana o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, já tinha adiantado publicamente que se podia estar na presença de um crime, revelando que o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) iria apresentar queixa ao Ministério Público: “Há princípios básicos da lei de bases do ambiente que foram desrespeitados”. Uma porta-voz do instituto disse ao PÚBLICO que notificou o Ministério Público há cinco dias, a 23 de Dezembro.
Matos Fernandes não detalhou que tipo de delitos podem ter sido cometidos. Mas para o procurador Raul Farias, que durante vários anos lidou com os crimes contra animais na Procuradoria-Geral da República, o que pode estar em causa numa situação deste tipo é um crime de dano contra a natureza. Para se perceber se houve crime, vai ser preciso determinar, entre outras coisas, se foram eliminados muitos exemplares da fauna deste ecossistema. “Esta avaliação terá necessariamente de passar, numa primeira fase, por apurar se os animais abatidos pertenciam àquele ecossistema local ou se foram trazidos para o mesmo único e exclusivamente para a actividade da caça”, explica o magistrado. “No caso de pertencerem ao ecossistema local, se, em função do abate verificado, teve lugar uma redução significativa do número de exemplares daquelas espécies naquele ecossistema localizado”.
Já a Provedora dos Animais de Lisboa, Marisa Quaresma dos Reis, fala da violação da lei de bases da caça, que estabelece limites para os quantitativos de captura, facto que o ministro confirmou: o número de abates terá sido muito superior ao permitido. Matos Fernandes qualifica o que se passou como “um acto vil e ignóbil”. E apesar de num primeiro momento se ter recusado a relacionar a matança com os planos para criar na herdade da Torre Bela uma central fotovoltaica, cuja existência é incompatível com a existência de animais de grande porte, como é o caso, num segundo momento não só revogou a licença de caça do local como suspendeu o projecto, que se encontrava em consulta pública.
Segundo o estudo de impacto ambiental para a construção da central fotovoltaica nem os veados nem os gamos podem ser simplesmente libertados na natureza, uma vez que possuem “uma genética que não corresponde às espécies ibéricas. Perante isso, acrescenta o documento, datado de Julho passado, “está a ser ponderada uma solução alternativa da sua transferência para uma outra herdade (vedada) em alternativa a uma solução mais drástica de extermínio desta população através de sucessivas acções cinegéticas”. As diferentes soluções iriam ser apresentadas ao ICNF, a fim de se aferir qual a mais adequada”.
Porém, no mesmo documento também é referido que o proprietário do terreno andava a promover caçadas para reduzir a presença destes animais.