Primeiro vacinado em Portugal: “Se foi uma distinção, há muitas pessoas que mereciam mais do que eu”
António Sarmento, o director do serviço de infecciologia do São João, foi um dos profissionais de saúde chamados para se vacinarem este domingo. Foi o primeiro de todos, logo às 10h07. O médico diz que alguém o tinha de ser e acredita que foi o escolhido pelo “simbolismo”.
Na manhã desde domingo, o rosto de António Sarmento encheu as páginas dos meios de comunicação e abriu os jornais das 13h: o médico infecciologista do Hospital de São João, no Porto, foi a primeira pessoa em Portugal a receber a tão esperada vacina contra a covid-19. Fê-lo perante dezenas de câmaras e microfones e na presença da ministra da Saúde, Marta Temido, e de dezenas de colegas, alguns dos quais também esperavam a sua vez. No fim, recebeu um penso e uma salva de palmas e deu lugar a outro profissional de saúde, que iria ser vacinado dali a instantes.
Aos 65 anos, 42 destes como médico, António Sarmento não esperava ser o primeiro a receber a vacina da Pfizer-BioNTech e diz que “não correu atrás da vacina”, mas também não fugiu dela. “Sempre disse que se me chamassem hoje iria e se me chamassem dentro de 15 dias ia com a mesma tranquilidade. A perspectiva da vacina não me tirou um minuto de sono, nem antes de a receber nem depois”, conta, em conversa com o PÚBLICO.
A ministra da Saúde sublinhou, na manhã deste domingo, que vacinar em primeiro lugar os profissionais de saúde foi uma “escolha pragmática”. O conselho de administração do hospital diz que o infecciologista foi escolhido como símbolo da “luta nesta pandemia”. “Alguém tinha que ser. Se isto foi considerado uma distinção, há muitas outras pessoas que mereciam mais do que eu. Se foi por uma questão de simbolismo, acho que faz sentido e tem alguma razão de ser, já que sou o responsável pelo serviço de doenças infecciosas que foi a origem e o centro de tudo isto”, diz o médico. O PÚBLICO perguntou ao Ministério da Saúde que critérios foram usados para escolher não só o primeiro vacinado, mas também o hospital onde o processo começaria (de entre os cinco centros hospitalares do país que já estão a vacinar os seus profissionais), mas não obteve resposta até ao momento.
António Sarmento tem já uma uma longa carreira profissional ligada à luta contra doenças devastadoras, como o VIH/sida, a gripe, a tuberculose e até mesmo algumas provocadas por outros coronavírus, como a Síndrome Respiratório Agudo Severo (SARS). Apesar de ter passado mais de metade da sua vida ao serviço como médico, resume o seu percurso profissional em algumas palavras: estudou na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), fez o internato geral, foi assistente do professor Walter Osswald na área da farmacologia antes de entrar para a especialidade de doenças infecciosas. Mas também se especializou em farmacologia clínica, área onde começou a sua carreira, e, anos mais tarde, em medicina intensiva.
Agora é director do serviço de infecciologia do São João e professor na faculdade onde estudou há muitos anos. O seu departamento foi um dos primeiros a preparar-se para lidar com a doença causada pelo novo coronavírus quando essa era uma realidade vivida apenas lá fora. E, assim sendo, está desde Março na linha da frente no combate à pandemia.
Foi ele, aliás, que abriu as portas do seu serviço aos jornalistas do PÚBLICO, em Fevereiro, para uma visita guiada à ala dos casos suspeitos. Naquela altura existia apenas um quarto para possíveis casos de infecção, mas o responsável já admitia que se a situação se alterasse outras divisões daquela ala hospitalar teriam de ser activadas. Como se sabe, todas essas previsões acabaram por se concretizar e o São João foi, e ainda é, o principal hospital da região Norte a lidar com doentes covid-19.
O tempo que sobra ao infecciologista por estes dias — e que não está alocado para trabalhar ou dormir — não é muito, mas há uma lista curta de coisas que o preenchem e que diz não dispensar. “Gosto de conversar, de ler, de estar com os meus netos, com as minhas filhas e mulher, gosto de estudar medicina e gosto de estar no meu serviço”, diz, acrescentando que a família reagiu com muita naturalidade ao anúncio, uma reacção espelhada na do próprio médico.
Ainda que o começo da vacinação tenha sido uma notícia de esperança para o país, António Sarmento diz que também lhe trouxe alguma ansiedade. Isto porque ser o primeiro veio com um inevitável mediatismo a que não está habituado. Não é o seu mundo e o médico, citando Zeca Afonso, diz que “mais vale andar no mar largo do que nas bocas do mundo”. “É um misto de amargo e doce. O amargo é a exposição que isto implica, o medo de dizer alguma coisa errada. Mas também há o sentido cívico de prestar informação sobre aquilo que é a minha área.”
"O grande desafio da minha vida foi ser médico"
Apesar de o primeiro caso de covid-19 em Portugal ter sido confirmado em Março, desde Janeiro que havia mudanças a acontecer no São João, até porque, a partir do momento em que o vírus se espalhou rapidamente pela China, António Sarmento teve “a clara noção” que o mesmo ia acontecer com o resto do mundo.
“O ano passado já tínhamos proposto ao conselho de administração que se criasse uma unidade de infecções emergentes, pensando já que isto mais tarde ou mais cedo ia acontecer. E como somos um dos dois centros de referência do país [juntamente com o Curry Cabral] convinha termos uma estrutura a pensar nisso. Quando vimos os primeiros casos na China, ficamos com a certeza quase absoluta que ia chegar aqui porque a China é um país muito populoso. Muita gente viajava do resto do mundo para lá e de lá para o resto do mundo.”
Os mais de dez meses seguintes foram duros para todos os profissionais de saúde portugueses, e para António Sarmento não foram diferentes, mas o médico recusa afirmar que este é o maior desafio da sua carreira, apesar de garantir que precisará de meses (ou anos) para o dizer com clareza e “distanciamento”. "O grande desafio da minha vida foi ser médico. É algo que temos que cultivar no dia-a-dia, como o amor ou a amizade. Se não for, corre o risco de não resistir às dificuldades, ao cansaço, ao stress. Na medicina temos muitas alegrias, mas também temos muitas preocupações. Temos coisas que correm bem e outras que correm mal”, diz.
E apesar de a idade já o colocar num dos grupos de risco da covid-19, garante que enquanto a pandemia durar estará “comprometido com ela”. “No futuro não sei, mas nunca iria deixar o hospital nesta altura a não ser que fosse obrigado”. O médico, que foi vacinado às 10h07, há quase 12 horas, diz que não sentiu nenhum efeito secundário, nem sequer dor no local da injecção. “Zero. Estou óptimo”. E que o desafio continue.