Frio a mais, sardinhas a menos: e se a circulação do Atlântico muda com o degelo?

Estudos paleoceanográficos têm tentado revelar a história climática do Atlântico Norte das últimas centenas de milhares de anos. O puzzle, complexo, é uma chave crucial para os cientistas tentarem antecipar as consequências do aquecimento global.

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Rui Gaudêncio

Decorria o ano de 1769, quando Benjamin Franklin publicou o primeiro mapa do oceano Atlântico onde está desenhada a corrente do Golfo. Mesmo em 2020, o mapa construído por Franklin, famoso pelas suas invenções e um dos pais fundadores dos Estados Unidos, continua a ser informativo. “A Carta da Corrente do Golfo”, título do documento, revela a corrente já bem definida a surgir entre a Florida e as Baamas, subindo depois junto da costa norte-americana até à Carolina do Norte, antes de virar para Leste e seguir pelo Atlântico.

A meio do oceano, esta promissora corrente de água quente superficial pode atingir entre 100 e 200 quilómetros de largura e alcançar uma profundidade de 1200 metros. Mapas bem mais recentes mostram as curvas e contra-curvas anuais que a corrente faz ao longo da sua viagem para Leste e que se assemelham a meandros. “É como imaginar um rio no oceano, em que as características são diferentes da água à volta”, explicou ao PÚBLICO Fátima Abrantes, cientista com décadas de trabalho na área da paleoceanografia, líder da equipa de investigação de oceanografia e alterações climáticas do Centro de Ciências do Mar (CCMar) da Universidade do Algarve e investigadora principal do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

No entanto, o mapa de 1769 não mostra a conclusão da viagem da corrente, de como se divide ao longo do Atlântico, com um braço a subir em direcção à Noruega, outro a passar junto dos Açores e um terceiro a descer pela costa portuguesa até às Canárias, voltando para as mesmas águas tropicais de onde surgiu. Tão pouco revela a importância da corrente para os Invernos relativamente leves da Europa Atlântica, ou na criação das águas que se afundam perto da Gronelândia, produzindo uma corrente de profundidade que desce pelo Atlântico e alcança os outros oceanos da Terra. Nem relaciona a sua existência com a abundância anual de sardinhas perto da costa portuguesa.

Benjamin Franklin não poderia conhecer todos aqueles fenómenos, muito menos uma história bem mais antiga, das últimas centenas de milhares de anos, sobre as oscilações que ocorreram na actividade da corrente de profundidade que segue para Sul e na corrente do Golfo, que geraram momentos de frio intenso no Hemisfério Norte. Estas mudanças cíclicas, bem definidas nos registros geológicos, tiveram impacto na distribuição de calor da Terra e podem ajudar a antecipar o que vai acontecer no futuro, com o aquecimento global e a possibilidade do gelo da Gronelândia derreter.

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A investigadora Fátima Abrantes no arquivo de amostras de sedimentos marinhos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera Rui Gaudêncio

Norte e Sul

Os oceanos e a atmosfera têm um papel fundamental em transportar o calor acumulado nos trópicos, onde a radiação solar é mais intensa, em direcção aos pólos da Terra. Nesse sentido, a corrente do Golfo é apenas uma parcela de um sistema que torna o clima do planeta mais ameno. “A corrente do Golfo é muito importante principalmente para o Noroeste da Europa. Devido a ela, Portugal e outros países como o Reino Unido têm Invernos mais quentes, cerca de mais cinco graus. Se não houvesse esta corrente, o Inverno de Portugal seria como o de Boston, onde há tempestades de neve neste momento”, resumiu Adina Paytan ao PÚBLICO. A oceanógrafa israelita faz investigação na intersecção de áreas como a geoquímica, a paleoceanografia e o ambiente, e é líder do Laboratório de Biogeoquímica na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, nos Estados Unidos.

O braço da corrente que chega a Portugal provoca também um fenómeno sazonal de afloramento costeiro, em que as águas profundas do oceano sobem até à superfície, trazendo nutrientes acumulados no leito. Este movimento deve-se ao vento que vem de Norte para Sul, que ocorre normalmente entre Maio e Setembro. “Tem de haver uma força que faça com que a circulação da corrente junto à costa se dirija de Norte para Sul, e que haja o deslocamento das águas superficiais”, explicou Fátima Abrantes, referindo-se à “nortada”. O vazio deixado pelas águas superficiais é substituído pelas águas de profundidade que afloram.

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Uma diatomácea JMPost/Universidade da Tasmânia

Este enriquecimento de nutrientes à superfície permite que haja uma explosão de microalgas que compõem o fitoplâncton chamadas diatomáceas, que recorrem à fotossíntese e, tal como as plantas, usam a luz e o dióxido de carbono para produzirem matéria orgânica. Desta forma, originam uma cadeia alimentar que recomeça a cada ano.

O afloramento costeiro é responsável pelas condições mais produtivas nos oceanos da Terra. Em Portugal, está associado a um peixe importante a nível comercial e cultural. As sardinhas são um dos animais que se alimentam das algas que proliferam com o afloramento, a partir de Maio. “A sardinha começa a ficar gordinha em Junho e Julho”, disse a investigadora portuguesa.

Mais a norte, perto da Gronelândia, surgem também condições especiais a nível global. À medida que o braço de água vindo da corrente do Golfo sobe em direcção ao pólo, vai perdendo calor através da evaporação. Isto gera uma água mais fria e com um teor de salinidade superior, que a torna mais densa, provocando uma corrente descendente chamada circulação termoalina meridional do Atlântico.

“Estas águas tornam-se densas no Atlântico Norte e espalham-se para Sul a grandes profundidades, no oceano. Este movimento para Sul tem de ser contrabalançado com águas transportadas para Norte. Muita dessa água é levada pela corrente do Golfo, o que faz dela uma corrente particularmente forte e importante”, descreveu ao PÚBLICO Jerry McManus, geoquímico que investiga o oceano e a variabilidade climática no passado e é professor no Instituto da Terra da Universidade da Columbia, nos Estados Unidos. “Isto é o que ocorre na era moderna, mas temos fortes indicações de que houve mudanças no passado. O que é notável é que quando houve uma mudança substancial, a atmosfera do Hemisfério Norte arrefeceu de uma forma dramática e a do Hemisfério Sul aqueceu.”

Presente e passado

Jerry McManus e a sua equipa têm estado a analisar amostras de sedimentos do fundo do oceano Atlântico para estudar as inflexões climáticas descritas acima. Nas últimas centenas de milhares de anos, a Terra passou por várias eras glaciares, entrecortadas por períodos interglaciares. A última terminou há cerca de 12.000 anos. Estes períodos de mais frio, quando icebergues desciam até à latitude de Portugal e parte da Europa estava coberta por gelo, estão associadas a ciclos astronómicos da Terra e à própria geografia do planeta, cuja distribuição dos continentes permite a acumulação de gelo em ambos os pólos.

“Dentro desse período geralmente mais frio, houve oscilações dramáticas em escalas de tempo de séculos a milénios, que não se podem facilmente explicar pela oscilação orbital, pela quantidade de gelo, ou pela concentração de dióxido de carbono atmosférico”, referiu Jerry McManus. A partir dos sedimentos, o investigador verificou que antes da ocorrência das oscilações de temperatura que tornavam o Hemisfério Norte ainda mais frio, havia um enfraquecimento da circulação termoalina meridional do Atlântico. Passados cerca de mil anos, a força da corrente restabelecia-se, correspondendo a um aquecimento no Hemisfério Norte.

Em 2016, a equipa publicou um artigo na revista Science onde descreve a repetição deste fenómeno entre há 60.000 e 25.000 anos, a partir da análise de sedimentos do fundo do oceano Atlântico, na região das Bermudas. De seguida, estudou-se apenas o fenómeno mais recente a partir de amostras de sedimentos em várias regiões do Atlântico e encontrou-se a marca da diminuição da força da corrente termoalina.

Agora, os cientistas estão a estudar uma possível causa do enfraquecimento da corrente. Um dos candidatos mais importantes para este fenómeno é a água doce então acumulada nos glaciares da América do Norte, da Gronelândia e do Norte da Europa. “A água doce de uma ou duas destas fontes alterou as características de densidade da água do Atlântico Norte, tornando difícil ou mesmo impossível para as águas de superfície se tornarem densas e continuarem a circulação termoalina”, avançou Jerry McManus.

Será que o degelo da Gronelândia pode agora provocar o mesmo fenómeno? “Essa é uma pergunta muito importante. Uma mudança forte da corrente seria catastrófica, mas é muito improvável. Sabemos que existe suficiente gelo na Gronelândia para aumentar os oceanos do mundo em vários metros. Mas muitas destas coisas de que estamos a falar dependem do ritmo do derretimento e da sua localização, e isso são perguntas difíceis de responder”, respondeu.

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Arquivo de sedimentos marinhos do Observatório da Terra Lamont-Doherty na Universidade de Columbia, EUA LDEO

É por isso que continua a ser tão importante olhar para os arquivos geológicos que dão informação sobre os processos passados e, deste modo, ajudam a interpretar as novidades no presente. Estes arquivos encontram-se nos sedimentos marinhos, mas também nos fósseis de corais, nas estalactites, nos sedimentos de lagos e nos glaciares. Nestes arquivos os cientistas procuram por indicadores que dão informação sobre a concentração de gases na atmosfera, a temperatura do mar, a produtividade do oceano, a velocidade das correntes, entre outros aspectos.

Por exemplo, Jerry McManus foi analisar nos sedimentos a relação entre os isótopos de tório e protactínio, que surgem no oceano a partir do decaimento do urânio, e dão indicações da velocidade da corrente termoalina. A equipa de Fátima Abrantes também analisa os sedimentos junto da costa portuguesa para investigar indicadores sobre as condições das correntes marinhas e do afloramento costeiro no passado. As diatomáceas são um indicador directo da produtividade destes afloramentos. “Uma das áreas que prezo muito é a investigação de novos indicadores, isso é fundamental para avançarmos e compreendermos melhor as coisas”, explica a cientista.

Os foraminíferos, organismos unicelulares que se alimentam de bactérias e de fitoplâncton, e surgem durante o afloramento costeiro, permitem obter informações sobre a coluna de água. A partir dos fósseis de foraminíferos retidos nos sedimentos, é possível tentar reconstituir as características da coluna de água no passado. Mas, para isso, “é preciso colher foraminíferos e analisar a água em simultâneo” para se identificar a relação entre os indicadores e as características da água no presente e, assim, conseguir obter informação sobre o passado a partir desses mesmos indicadores. “Temos de perceber o presente, o estudo do oceano actual é fundamental”, reiterou Fátima Abrantes.

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Um foraminífero Hannes Grobe/AWI

Lacunas de conhecimento

Uma das perguntas que cientistas como Fátima Abrantes tentam responder é qual o impacto de um possível afrouxamento da corrente termoalina no Atlântico, devido ao aquecimento global e ao derretimento dos glaciares da Gronelândia, na corrente do Golfo e na produção do afloramento costeiro na costa portuguesa.

“Os dados que tenho da tese de doutoramento mostram que terá havido uma maior produtividade nos períodos frios. A calote polar do Árctico aumentou, os limites da circulação da corrente do Golfo baixaram em latitude e os ventos intensificaram-se”, lembrou a cientista. “Mas é possível que as regiões mais produtivas mudem, mesmo dentro da faixa continental portuguesa. A região a norte de Peniche é supostamente mais produtiva, no Alentejo é mais restritiva. E no Algarve o afloramento na costa é raro.”

Este é um dos problemas dos cientistas, muitas vezes as reacções do sistema a nível regional são diferentes e não dão uma leitura do que se passa a uma escala maior. A especialista exemplifica com trabalhos recentes de outras equipas sobre o comportamento actual da corrente marinha na zona da Galiza e no Algarve: “No Norte, o nível de afloramento ao longo de 40 anos mantém-se, mas a altura é diferente, está a acontecer mais cedo. No Algarve parece estar a aumentar.”

O outro problema é a própria complexidade dos fenómenos desencadeados pela acção humana. “Estamos a alterar a circulação oceânica superficial, isso vai mudar o regime de ventos, a circulação de nutrientes. Mas há também a acidificação dos oceanos. Que influência isto vai ter no processo físico do afloramento costeiro? Será que essas águas trazem a mesma quantidade de nutrientes?”, questiona. Uma diminuição desta produtividade pode diminuir os stocks de sardinhas.

Uma das falhas que Fátima Abrantes quer colmatar é medir o comportamento da corrente do Golfo ao largo da costa portuguesa nos últimos 1000 anos, antes do início das emissões do dióxido de carbono antropogénico, há mais de 200 anos. Só assim é possível identificar nas observações modernas o sinal referente ao papel dos humanos no clima: “Falta-nos ter dados continuados de observação do oceano para melhor compreender a situação actual e as variações que estão a acontecer.” Tendo em conta a rapidez com que estamos a sentir os efeitos das alterações climáticas, é uma corrida contra o tempo.

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