As dificuldades dos rastreadores militares. “Vou contactar o meu advogado”
Do outro lado do telefone há desconfiança, dúvida, solidão e dificuldades. “Somos uma espécie de psiquiatras”, reconhece um oficial.
As duas salas do Centro de Informação Geoespacial do Exército, onde 15 militares seguem a pista dos contactos de infectados pela covid-19 em colaboração com o agrupamento dos centros de saúde de Cascais, assemelham-se, em tudo, a turmas escolares. Os rastreadores estão sentados à distância social recomendada em pequenas mesas e têm um computador à frente. Diante deles, está o coordenador, como se fosse um professor. É assim que está montada a plataforma trace covid, popularizada nas conferências de imprensa da Direcção-Geral de Saúde, que procura a pista do vírus na comunidade. É um trabalho à distância, com escolhos e surpresas para esta equipa de militares.
“Vou contactar com o meu advogado”. Foi na manhã desta terça-feira que uma utente contactada pelo cabo-adjunto Cabral pôs fim a duas conversas espaçadas de 15 minutos. “A senhora tinha estado sem máscara num carro com um caso positivo”, explica o militar ao PÚBLICO. “Liguei esta manhã [terça-feira] depois das nove, pediu-me para telefonar um pouco mais tarde. Assim fiz. Mostrou-se indisposta, desconfiou, duvidou, disse que ia contactar o advogado e desligou. O caso foi encaminhado para o centro de saúde”, relata.
Cada chamada implica, obviamente, a apresentação do rastreador. Dá o posto e diz que é do Exército, explica ao que vem, seguindo os parâmetros definidos para um contacto de risco. A saber: alguém que conviveu sem máscara, a menos de dois metros e por mais de 15 minutos com um caso que se relevou positivo ao covid-19.
Neste caso, o trabalho de Sherlock Holmes, de reconstituir os contactos de um infectado e, assim, quebrar a cadeia de transmissão, foi gorado. O inquérito epidemiológico ficou por fazer e passou para a jurisdição do centro de saúde de Cascais. Foi a mais recente, e insólita, negativa que o militar recebeu. Com bonomia, o cabo-adjunto Cabral diz que nunca vai esquecer este episódio. A segunda negativa que já viveu, mas a primeira com a invocação de recurso a um causídico.
“É preciso muito tacto humano. Tentamos compreender quem está do outro lado, a situação não é fácil”, reconhece o capitão Pires, coordenador deste grupo. “Somos recebidos das mais variadas formas, há quem queira ajuda, outros têm dificuldade em dar os dados pessoais que pedimos e há quem se recuse a facilitar os nomes dos contactos”, sintetiza.
“Através do discurso que mantemos, antevemos as diferenças sociais, mas em todos os estratos há quem queira ou não colaborar, o que muitas vezes está relacionado com as condições laborais”, anota. “Quando as pessoas ficam em isolamento profiláctico, suspendem o seu trabalho, não têm direito a outros subsídios, e não pretendem ficar isolados para não perderem rendimentos”, afirma, por seu lado, o capitão Rebelo, do Estado-Maior do Exército. Afinal, se o vírus pode atingir qualquer um, a sua incidência é diversa caso a caso. Tem o poder revelador da realidade social de uma potente lupa.
“Há situações engraçadas”, pondera o capitão Pires. “Quem fez o serviço militar obrigatório tem uma certa empatia para connosco”, revela: “Outros, que estão fechados em casa há muito tempo ou que estão sós, sentem a necessidade de falar, nalgumas situações somos uma espécie de psiquiatras.”
Decisivo é, pois, o primeiro contacto. “A abordagem é trabalhada na formação. E uma questão muito sensível. Apresentamo-nos com o posto em nome do Exército português em apoio ao Serviço Nacional de Saúde”, insiste. No caso deste grupo a trabalhar com os agrupamentos dos centros de saúde de Cascais, esta formação teórica foi feita, em três ou quatro dias, na Amadora e a prática já em Cascais, concelhos da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, onde operam quatro equipas, segundo a resolução do Conselho de Ministros de Novembro que atribuiu estas funções às Forças Armadas. A juntar às outras que já executam, como as campanhas de sensibilização para a higienização nos lares. Ou a constituição, no Hospital Militar de Belém, do Centro de Apoio Militar ao covid-19, em articulação com a Administração Regional de Saúde e Vale do Tejo, actualmente com 60 camas, mas com capacidade para outras 30 num terceiro piso.
A operação dos rastreadores foi iniciada a 19 de Novembro e, até 20 de Dezembro [passado domingo], as equipas tinham realizado 22.331 inquéritos que implicaram mais de 43.336 contactos. O horário, de segunda a segunda-feira, arranca de manhã e decorre até às 20 horas, em sistema de roulement dos membros das equipas.
Rastreadores em falta
O Exército tem capacidade para constituir 35 destas equipas e, actualmente, além das quatro a operar na área de Lisboa e Vale do Tejo, existem outras oito a trabalhar na Administração Regional do Norte, envolvendo 120 militares nestas duas zonas. Este empenho, de acordo com comunicação do Estado-Maior General das Forças Armadas do início da segunda semana de Dezembro, além do Exército, com maior presença no terreno, engloba também os outros ramos, a Marinha e a Força Aérea, envolvendo até 356 militares divididos por 19 equipas.
A necessidade de mais rastreadores foi sublinhada pelos serviços de saúde pública ainda na primeira vaga da pandemia, porque desviava equipas clínicas para uma função, necessária e laboriosa de perfil administrativo. Contudo, o futuro imediato não vai dispensar esta necessidade. Nesta sexta-feira, 26 de Dezembro, segundo a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e a Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Portugal vai precisar entre 5173 a 6441 rastreadores. Natal e Ano Novo suscitam preocupação e aconselham preparação atempada.
O tempo médio da realização de um inquérito epidemiológico é de 45 minutos e, em média, cada caso positivo gera outros sete. No Centro de Informação Geoespacial do Exército, a equipa de rastreadores realiza 24 inquéritos epidemiológicos por dia — três a quatro por operador — e 50 contactos.