O meu Natal de crachás

Que seja um bom Natal de crachás, se assim tiver de ser. Com mais luzes para esconder a longa noite, mais toalhas vermelhas, mais volume de som no computador, mais sorrisos e acenos para a webcam, mais queixas do router da internet, muitas e muitas juras convictas de que nos reencontraremos a sério em 2021, com quem ainda nos pudemos reencontrar.

Foto
GUGLIELMO MANGIAPANE/Reuters

Ultimamente tenho andado angustiado a pensar em crachás. Sim, crachás: aquele rectângulo de plástico com um nome e a imagem de uma pessoa, no qual raramente pensamos, mas que nos invadiu a vida.

Não gosto de crachás. Sempre que os recebo, num qualquer evento onde somos convidados a confraternizar com pessoas que nunca vimos, reviro o crachá nas mãos, guardo-o no bolso com relutância, encontro o sítio menos adequado possível do corpo para o pendurar. Só uma vez vi um crachá ter utilidade num evento social, em que a anfitriã, senhora baixinha e enérgica, se aproximava de cada recém-chegado que tivesse o ar perdido de quem entra numa estação de comboio desconhecida, olhava-lhe para o crachá, depois para o rosto, e então saudava a pessoa calorosamente, como a um velho conhecido a quem tinha imenso para contar. Era, claro, da classe política, o que justificaria a sua singular competência, pois um político profissional é o melhor amigo de todas as pessoas que não conhece, desde que tenham o crachá.

2020 foi o ano em que a população do mundo se transformou em crachás. Que outra coisa serão aqueles rectângulos das videoconferências, com nomes de pessoas, às vezes a sua imagem animada, senão crachás de reuniões, a tomarem o lugar do verdadeiro encontro de pessoas de carne e osso? A fazerem de conta que estamos juntos, que nos conhecemos, e em que até podemos personalizar o fundo do nosso crachá digital com a melhor foto do nosso local paradisíaco e assim impressionar os outros crachás.

Tão costumeiros se tornaram os crachás das videoconferências que agora, a medo, como quem não quer coisa, se sugere que o ideal era termos um Natal de crachás, sem beijos e abraços, só caras a sorrir dentro de rectângulos, acenos tristes, mãos em forma de coração. Diz-se que é mais seguro, que o vírus não faz consoadas, e afinal é só mais um Natal, e muitos outros natais haverá. Não será esse Natal de crachás muito melhor do que um Natal de máscaras, distâncias medidas a olho, rostos que se viram de lado e corpos que se tocam a medo?

É só mais um Natal, e todos sabemos que o Natal é sempre a mesma coisa: árvores de plástico, bolas coloridas, tiras de papel de embrulho, presentes de última hora, fritos com açúcar, lembranças de quem esteve em natais passados e agora já não está ou nunca voltará a estar, lembranças daqueles a quem só recordamos, encontramos ou ligamos nesta mesma altura do ano.

Que seja um bom Natal de crachás, se assim tiver de ser. Com mais luzes para esconder a longa noite, mais toalhas vermelhas, mais volume de som no computador, mais sorrisos e acenos para a webcam, mais queixas do router da internet, muitas e muitas juras convictas de que nos reencontraremos a sério em 2021, com quem ainda nos pudemos reencontrar.

Alguém por aí já aprendeu a arte de dar abraços a crachás?

Sugerir correcção
Ler 1 comentários