De Alfama para Belém, o que se perde e o que se ganha
Apesar do seu nome, o Museu Judaico não será o “museu dos judeus”, mas um museu português que contará uma história específica, a história e a cultura dos judeus portugueses e o seu contributo à nação da qual fazem parte.
Na segunda-feira, dia 21 de Dezembro, a Câmara Municipal de Lisboa votou favoravelmente o contrato-promessa de cedência de um terreno em Belém para o Museu Judaico. Previsto inicialmente para o Largo de São Miguel, em Alfama, o museu emigra para Belém. É melhor, ou é pior?
Quando há uns anos nos propuseram um espaço em Alfama, regozijámo-nos: em Alfama existiu uma das três judiarias de Lisboa e construir aí o museu era um regresso simbólico, a evocação de uma memória há muito esquecida e apagada. Começámos a trabalhar com entusiasmo e a arquitecta Graça Bachmann projectou um belo edifício por ela doado graciosamente.
Mas o entusiasmo durou pouco. Poucos meses depois fomos confrontados com a hostilidade de uma associação de moradores, sob a forma de uma providência cautelar. Os argumentos eram diversos: uns eram contra o projecto de arquitectura em si mesmo, outros não queriam de todo o museu ali. Compreendemos assim que para mantermos o nosso objectivo era preciso mudar de rumo.
Graças ao apoio sempre presente do município, vamos poder construir o museu em Belém, num terreno cuja dimensão e localização nos permitem sonhar mais alto. O primeiro passo foi convidar o prestigiado arquitecto internacional Daniel Libeskind para criar o projecto, convite aceite com entusiasmo. A sua proposta será sem dúvida uma grande mais-valia para o museu e para a cidade de Lisboa.
Para a gestão e instalação do museu criámos uma associação de âmbito privado sem fins lucrativos a que demos o nome de Hagadá. Porquê este nome “estranho”? A palavra Hagadá vem do verbo em hebraico “Leagid” que significa dizer, contar, narrar. É precisamente isso que o museu fará: contar uma história, a história e a cultura dos judeus portugueses e o seu contributo à nação da qual fazem parte.
Apesar do seu nome, o museu não será o “museu dos judeus”, mas um museu português que contará uma história específica, como específicas são em geral as histórias contadas pelos museus. Por uma razão muito simples: a história de todos os povos é também a história da sua interacção. A vida dos judeus em Portugal é uma história judaica e portuguesa, o que significa que ela não pode ser abordada de forma separada da história de Portugal e, em particular, da sociedade cristã na qual foi evoluindo e sofrendo todos os embates, todas as influências. Por muito forte que tenha sido o papel da identidade religiosa judaica na matriz do povo judeu, e foi-o sem dúvida alguma, a cultura ibérica foi igualmente decisiva no que hoje chamamos de “Sefarad”.
No milénio que precedeu a constituição da Nacionalidade, os judeus viveram e conviveram com uma multiplicidade de culturas, nomeadamente Romanos, Visigodos e Muçulmanos. Esta diversidade forjou o carácter sefardita do judaísmo português, atribuindo-lhe uma originalidade e uma especificidade praticamente únicas no mundo judaico.
Mas o judaísmo português tem outra particularidade: a longevidade de uma presença ininterrupta pelo menos até ao final do século XV, quando se inicia o período da expulsão, do baptismo forçado e da instauração da Inquisição. Contrariamente aos seus irmãos de fé na Europa cristã, sucessivamente expulsos dos mais diversos países e novamente readmitidos ao sabor da necessidade dos seus préstimos, os judeus na Península Ibérica aqui permaneceram praticamente sem interrupção durante perto de 2000 anos. Esta longevidade teve como consequência não apenas uma convivência multiétnica e multirreligiosa, mas também usufruir de um estatuto social impensável no resto da Europa. Apesar de momentos dolorosos de discriminação e perseguição, o clima de relativa tolerância permitiu-lhes contribuir decisivamente para o Portugal de hoje.
O Museu Judaico de Lisboa não tem a ambição de contar a história da interacção luso-judaica na sua globalidade. Mais modestamente e de forma acessível ao grande público, o seu objectivo é cruzar as duas histórias em épocas, momentos, episódios e personagens concretos que demonstrem essa relação íntima, feita de convivência e de perseguição, de amor e de ódio, de desterro e de saudade, de reencontro e reconciliação… Na verdade, tal como todas as histórias de amor…
Associação Hagadá