Concorrência condena supermercados e empresas de bebidas a coima de 304 milhões

Cadeias Modelo Continente, Pingo Doce, Auchan, Intermarché, Lidl e E.Leclerc, e fornecedoras de bebidas Central de Cervejas e Primedrinks, condenadas por alinharem preços. É a primeira condenação relacionada com preços de venda ao público na grande distribuição.

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Nuno Ferreira Santos

A Autoridade da Concorrência (AdC) condenou esta segunda-feira as cadeias de supermercados Modelo Continente, Pingo Doce, Auchan, Intermarché, Lidl e E.Leclerc (Cooplecnorte), assim como as fornecedoras de bebidas Sociedade Central de Cervejas (SCC) e Primedrinks, ao pagamento de coimas no valor total de cerca de 304 milhões de euros.

As empresas, bem como um administrador da SCC e um director de unidade de negócio da Modelo Continente (do grupo Sonae, proprietário do PÚBLICO), foram acusadas de alinharem os preços de vários produtos, limitando a capacidade de os consumidores poderem fazer as suas decisões de compra em função dos preços praticados por diferentes cadeias comerciais.

É a primeira condenação da AdC no sector da grande distribuição relacionada com os preços dos produtos vendidos ao consumidor, mas não deverá ser a última. Este ano, a entidade liderada por Margarida Matos Rosa já avançou com sete acusações de alinhamento de preços de venda ao público (PVP) de bebidas de outros fornecedores e ainda nos segmentos de pão e bolos embalados e produtos de higiene e beleza e há mais investigações em curso.

Na decisão de condenação agora anunciada estão em causa dois processos distintos, dos quais as empresas haviam sido formalmente acusadas em Março de 2019, rejeitando, todas elas, as imputações feitas pela entidade reguladora.

Nas coimas (que não podem ultrapassar 10% do volume de negócios da empresa no ano anterior à decisão sancionatória), a maior é aplicada à Modelo Continente: são 121,93 milhões de euros (e outra de dois mil euros aplicada a um director da empresa). Seguem-se Pingo Doce, 91 milhões, Auchan, 22,25 milhões, e Intermarché, 19,39 milhões (estas empresas foram condenadas nas duas decisões, pelo que foram aplicadas coimas únicas em cúmulo jurídico).

À SCC foi aplicada uma coima de 29,5 milhões e a um seu administrador uma outra de 16 mil euros. Para a Primedrinks, a sanção foi de sete milhões. Lidl e E.Leclerc foram castigados com coimas de 2,06 e 10,55 milhões de euros, respectivamente. Estas decisões são passíveis de recurso para o Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão.

Ilegalidades até 2017

O primeiro processo diz respeito “à combinação de preços entre Modelo Continente, Pingo Doce, Auchan e Intermarché e o fornecedor Sociedade Central de Cervejas (SCC), incluindo ainda um administrador da SCC e um director de unidade de negócio da Modelo Continente”.

Aqui, as práticas “duraram mais de nove anos – entre 2008 e 2017” e os diversos distribuidores e a SCC “concertaram os preços de vários produtos”, como as cervejas Sagres e Heineken, mas também Bandida do Pomar e Água do Luso, “para os fazer subir de forma gradual e progressiva no mercado retalhista”.

Numa segunda decisão, a AdC condenou as mesmas cadeias de supermercados (Modelo Continente, Pingo Doce, Auchan e Intermarché), e ainda o Lidl e o E.Leclerc, por combinação de preços através da fornecedora de bebidas alcoólicas Primedrinks.

Ao longo de “mais de dez anos, entre 2007 e 2017”, as empresas dedicaram-se à “fixação indirecta de preços de venda ao consumidor de vários produtos do portefólio da Primedrinks”. Neste portefólio encontravam-se “os vinhos do produtor Esporão e Aveleda, os whiskies The Famous Grouse ou Grant´s, o gin Hendrick’s ou ainda a vodka Stolichnaya.

“Através do recurso a um fornecedor comum as empresas participantes asseguravam o alinhamento dos seus preços de venda ao público, assim restringindo a concorrência pelo preço entre supermercados e privando os consumidores de preços diferenciados”, naquilo que se designa como uma prática de hub-and-spoke, considerada “muito-grave”.

Segundo a AdC, a SCC e a Primedrinks eram usadas como meio de evitar contactos directos entre as empresas concorrentes, o que resultaria numa situação de cartel tradicional, em que as empresas concertam directamente os preços.

Por tratarem-se de grupos que “representam grande parte do mercado da grande distribuição a retalho”, este tipo de ilícitos afecta “a generalidade da população portuguesa”, destaca a AdC. A entidade reguladora destaca ainda que impôs “a imediata cessação da prática, por não ser possível excluir que os comportamentos investigados estejam ainda em curso”.

E-mails comprometedores

Aos dados sobre a condenação que divulgou esta segunda-feira, a reguladora juntou elementos obtidos nas diligências de busca e apreensão, cuja publicitação não é habitual. Nomeadamente, e-mails reveladores trocados entre alguns dos intervenientes. Num deles, de um executivo da SCC, pode ler-se: “É exactamente esse o objectivo. Aumentar preços!! Keep going [Continuem]!!”. Ou este, de um responsável de uma das cadeias para uma chefia: “Com a entrada da nova tabela de preços e do novo ano, a Primedrinks solicitou-nos o alinhamento dos nossos PVPs para os PVPs que actualmente recomendam por forma a conseguirem também que o mercado acompanhe a sua subida. Aguardamos a sua validação”.

Há ainda uma recomendação polémica feita por uma das empresas em Julho de 2009: “Tendo em conta as notícias que têm saído na comunicação social dos últimos dias, sobre as investigações que a AdC está a efectuar, ou pretende efectuar, no relacionamento entre fornecedores-distribuidores, venho alertar para a necessidade, se ainda não o fizeram, de eliminarem todos os mails (incluindo este) com comunicação que verse sobre preços com os fornecedores e também entre as equipas. Principalmente aqueles que não obedecem ao mail tipo que temos implementado com a ajuda do Dep. Legal”.

Alerta que foi partilhado com as equipas: “Envio para conhecimento. Parece-me uma excelente recomendação. Para evitar a divulgação deste mail sugiro que destruam o mesmo e que passem (reforcem) a mensagem verbalmente. Devem também ter cuidado com toda a documentação escrita, seja prints de mails, sejam notas de reuniões”.

Estes e-mails foram obtidos nas buscas que a AdC efectuou em 2017 a mais de 40 instalações da grande distribuição e fornecedores em todo o país.

Com essas provas, a AdC abriu mais de uma dezena de processos, cujas notas de ilicitude (acusação), proferidas em 2019, resultaram nestas condenações, “apesar da elevada litigância das empresas na fase administrativa do processo”.

“Ameaças, retaliações e pressões”

Se a existência de contactos entre um fornecedor e um distribuidor sobre aspectos relacionados com a estratégia comercial (como a arrumação dos produtos em loja, o desenvolvimento de produtos inovadores, ou “meras recomendações de preços de venda ao público”) é normal neste tipo de parceria, já os contactos através dos quais se transmite informação sensível sobre estratégia comercial, e “a divulgação desta informação, por meio indirecto, às empresas concorrentes, com o objectivo de condicionar os respectivos comportamentos”, vai totalmente contra as normas da concorrência, explica a AdC.

“Qualquer operador económico deve determinar de maneira autónoma a política que pretende seguir no mercado”, de maneira a que o mercado funcione livremente. No caso dos processos de hub-and-spoke agora decididos, “as comunicações integrantes da infracção visavam fixar os preços de venda ao público (PVP) de um conjunto de produtos do fornecedor”. Com isso, promoviam e mantinham “um alinhamento horizontal desses PVP no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar, tendo em vista a sua subida, gradual e progressiva, por um determinado período temporal”.

A reguladora assegura que “eram dirigidas ameaças, retaliações, pressões e descontos condicionados (tanto da parte dos fornecedores como dos distribuidores) às empresas que resistiam ou se desviavam desse alinhamento”, um comportamento que “não é admissível, nem lícito”.

Neste tipo de acordos, os fornecedores tentam fixar os PVP dos seus produtos “num patamar artificialmente mais elevado, para que não sejam alvo de renegociações contratuais” por parte dos distribuidores, mantendo a margem de venda “que idealizaram”. Já as empresas de distribuição “eliminam a incerteza associada a uma ‘guerra de preços’” e “garantem a expectativa do recebimento de uma determinada margem na venda ao público”, esclarece a AdC.

Para os consumidores, o efeito é o oposto: preços mais altos e menor leque de escolha de produtos com melhor relação qualidade-preço.

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