Filiação maçónica: declarar ou não declarar, eis a questão
A possibilidade de declaração da filiação maçónica não é hoje clara à luz da legislação em vigor. Esperemos que o Parlamento esteja à altura do desafio e possa discutir a nossa proposta sem subterfúgios ou medos de interesses instalados.
Portugal é hoje uma sociedade democrática evoluída em que a liberdade de associação é um direito adquirido, mas vivemos num contexto em que os cidadãos são cada vez mais exigentes para com os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, exigindo-lhes deveres acrescidos de transparência e de compromisso com o interesse público. Nessa óptica, é hoje inconcebível que os titulares destes cargos continuem a não ter quaisquer incentivos para declarar a sua filiação em organizações como a maçonaria, que, tendo-se há muito desviado da sua matriz original, têm regras de funcionamento marcadas por uma grande opacidade e que apelam a fortes laços de hierarquia e de solidariedade entre os seus membros.
A possibilidade de declaração da filiação maçónica não é hoje clara à luz da legislação em vigor, uma vez que, apesar de aí se prever um campo aberto que supostamente tudo permite, a falta de uma orientação clara quanto às questões a declarar nessa sede tem-se traduzido, na prática, num verdadeiro convite à indiferença por parte do declarante. Tal deita por terra as eventuais potencialidades deste campo e inviabiliza a tal lógica de transparência acrescida exigida pela e devida à sociedade civil.
Para o confirmar, bastará olhar para o caso de João Soares, um deputado assumidamente maçon, que na XII e XIII legislaturas não declarou formalmente essa sua filiação, mas este não é caso único. É a insuficiência do actual modelo que nos obriga a agir.
Por isso mesmo, ganha redobrado interesse o debate no Parlamento nesta sexta-feira, em torno de uma proposta que pretende a consagração da possibilidade de os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos declararem no seu registo de interesses a filiação em organizações maçónicas, num modelo similar ao existente no Parlamento britânico e inclusivamente defendido no passado por importantes nomes ligadas à maçonaria como António Arnaut, Mário Martin Guia ou João Cravinho.
O modelo colocado à discussão é responsável, uma vez que não sobrecarrega com novas matérias e competências as entidades competentes para a fiscalização destas obrigações declarativas e assegura o pleno respeito pela Constituição. Do mesmo modo, também não pretende alterar o funcionamento destas organizações, proibir a participação nas mesmas ou obrigar à publicitação da filiação. Nas palavras de Jorge Miranda, um dos pais da nossa Constituição, esta proposta “trata-se de uma exigência de ética republicana” e concretiza um “princípio geral de transparência que deve dominar a vida política”. Este debate é útil porque, conforme afirmou Vital Moreira num post de apoio a esta proposta, a “integração de ‘irmandades’ com alto grau de solidariedade pessoal entre os seus membros constitui um risco sério para a isenção e a imparcialidade no exercício dos cargos públicos”.
Esta é uma proposta que faz um caminho no sentido de deixar claro que, no exercício das suas funções, os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos devem apenas estar comprometidos com a prossecução do interesse público e que os cidadãos podem confiar na neutralidade e independência dos seus representantes face aos interesses privados que se cruzam com o interesse público. Esperemos que o Parlamento esteja à altura do desafio e possa discutir sem subterfúgios ou medos de interesses instalados esta proposta.