Marvão: Do silêncio nasceu um festival

O Festival Internacional de Música de Marvão surgiu há apenas seis anos, mas já ganhou espaço na cena internacional. A população, ao princípio desconfiada, abraçou o projecto e já não sabe viver sem ele

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O que primeiro impressionou Christoph Poppen foi o silêncio. Um silêncio profundo que deixa despertos todos os sentidos e desimpede o caminho para a surpresa. No cimo da montanha, a vila revelou-se-lhe como um dos sítios mais silenciosos em que já estivera. “É uma das coisas mais impressionantes em Marvão. Há a beleza do local, a beleza da paisagem, a beleza da arquitectura, mas para um músico há este silêncio incrível. São centenas de quilómetros de silêncio real.”

Não são só os músicos que reparam. Num dia de Inverno sem vento, o que mais se escuta nesta vila do Alto Alentejo é o nada. No Verão a tarefa tornou-se mais difícil desde que, há seis anos, Christoph Poppen e Juliane Banse, respectivamente maestro e soprano, decidiram fazer em Marvão um festival de música clássica. Começou com pouca gente a actuar e pouca gente a assistir, mas rapidamente cresceu mais do que os seus fundadores sonhavam. Para 2020 estavam previstos 53 concertos em 17 dias.

“Num ano normal, nesta altura estaríamos a lutar para imprimir os flyers para os ter na Alemanha e na Áustria”, diz Daniel Boto, enquanto mostra as vistas junto à muralha. Em dias claros consegue ver-se até à Serra da Estrela. O director-executivo do Festival Internacional de Música de Marvão lamenta que a edição deste ano tenha tido de ser cancelada, ainda para mais quando a programação era dedicada a Beethoven, cujo 250.º aniversário de baptismo se assinala esta quinta-feira, 17 de Dezembro. “Pobre Beethoven! Era suposto ser celebrado em todo o mundo durante este ano”, sorri Christoph.

Voltando ao silêncio. O maestro alemão, que descobriu Marvão durante umas férias em família, repete que a ausência de som que aqui encontra “é algo de muito especial” e que “não existe em assim tantos sítios do mundo”. “Para mim, esse silêncio funcionou como quando um pintor olha para uma tela e de repente vê cores. Eu comecei a ouvir música no silêncio de Marvão.”

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“Este festival é construído a partir da energia das pessoas locais”, diz o maestro Christoph Poppen, co-fundador do festival. “É um grupo pequeno de pessoas, mas são muito confiáveis, leais e cheios de entusiasmo.” (imagem de arquivo, 2019) daniel rocha

Lisboa é muito longe

Foi em 2014 que os músicos entraram no castelo para os primeiros concertos, que duraram dois dias. No ano seguinte, o festival já teve 10 dias e começou a espalhar-se por outros sítios da vila e das redondezas, até em Espanha. Ganhou o seu espaço no circuito internacional.

Antes disso, porém, foi preciso conquistar a gente da terra. “No início achavam que isto era uma coisa extraterrestre”, diz Daniel Boto. Uma extravagância de estrangeiros que arranjaram um divertimento privado fora do alcance dos restantes. “Desde o primeiro dia que a minha visão para o festival foi atrair uma audiência internacional, que não vai aos grandes festivais de Salzburgo, Edimburgo ou Aix-en-Provence mas vem a Marvão”, explica Christoph. “Mas também ter as pessoas que ali vivem. Estava absolutamente consciente de que havia ali muitas pessoas que não seguiam a música clássica.”

Seis anos volvidos, parecem dissipadas as desconfianças. À porta de um dos poucos cafés de Marvão, onde Daniel entra para mostrar o retrato que um habitante fez de Christoph, uma mulher declara à gargalhada: “O maestro é meu amante! Está aqui no meu peito!”

Catarina Bucho, proprietária de uma mercearia e de uma hospedaria que também trabalha na produção do festival, resume a situação. “Era literalmente impossível não haver envolvimento da gente da terra. Um festival assim implica uma logística local que mexe com tudo.”

Pense-se, por exemplo, na dor de cabeça que é transportar os grandes instrumentos de uma orquestra até ao castelo, que fica no topo da vila e onde só se chega por ruas estreitas. E, numa terra onde quase não existem hotéis e em que a população ronda a centena, como dar alojamento aos cerca de mil artistas que anualmente ali chegam? E como garantir espaços de ensaio e guarda-roupa? Ou, simplesmente, como transportar os músicos desde o aeroporto de Lisboa, que fica a quase três horas de viagem? “É nas pequenas coisas que se vê que aqui os recursos são muito mais limitados, mas que se faz acontecer na mesma”, diz Catarina. “Isto é um feito de toda uma terra, de toda uma população. Estamos todos metidos nisto”, diz Daniel.

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Marvão pode ser Bilbau

Filho de Marvão que andou por fora, Daniel Boto regressou à casa de família em 2015 para a transformar em alojamento local. Contactou com o festival pela primeira vez e prontificou-se para ajudar. Mais tarde tornou-se o seu director-executivo, o que significa passar grande parte do ano ao telefone ou em trocas de e-mail com pessoas de todas as partes do mundo. “Raramente consigo ver concertos”, admite, explicando que o volume de coisas para fazer é sempre muito grande, especialmente quando o evento já decorre.

“Isto tinha tudo para não ser viável”, reconhece, numa visita ao castelo. Christoph e Juliane, apesar de terem casa em Marvão, têm carreira internacional e poucas vezes podem deslocar-se a Portugal. Na vila é uma equipa de apenas três pessoas que se encarrega de montar o festival, apesar de uma grande mobilização da população nos tempos que o antecedem. Os patrocínios da Fundação La Caixa e da seguradora Ageas são fundamentais, mas os recursos financeiros e logísticos não abundam, o que obriga sempre a uma grande ginástica criativa.

“O grande desafio nem é tanto convencer os artistas a virem, porque eles confiam no meu próprio entusiasmo. Eu digo-lhes ‘É o melhor sítio do mundo, têm de vir’ e eles acreditam. Mais desafiante foi construir uma estrutura em Marvão, porque sempre foi minha ambição trabalhar com a comunidade e não apenas implantar qualquer coisa. Podia ter pedido a um produtor internacional com experiência para vir organizar isto”, diz Christoph Poppen. “Este festival é construído a partir da energia das pessoas locais. É um grupo pequeno de pessoas, mas são muito confiáveis, leais e cheios de entusiasmo.”

Os elogios são-lhe devolvidos na mesma medida. “Aquilo que o maestro fez aqui… Não tenho memória de uma coisa tão excepcional. É uma coisa que dá tanto de volta à terra que é impossível a comunidade não dar o melhor de si”, afirma Catarina Bucho. “Não temos a pretensão de sermos os salvadores do mundo, mas isto contribui para desacelerar a desertificação”, conclui Daniel Boto. O primeiro hotel cinco estrelas de Marvão está a ser construído e mais do que uma casa devoluta está a entrar em obras.

Diz Christoph: “Lembro-me sempre de Bilbau, que era uma cidade que ninguém conhecia e depois construíram o museu [Guggenheim]. Agora vai gente de todo o mundo a Bilbau, entrou no circuito internacional. E claro que fez uma diferença muito, muito grande na economia da zona. Penso que uma coisa semelhante poder acontecer em Marvão.”

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O festival expandiu-se para Castelo de Vide, Portalegre, Valencia de Alcántara. Contudo, o castelo de Marvão continua a ser o local mais simbólico para os concertos. É no segundo terreiro, mais pequeno, que geralmente se apresentam as orquestras de maior dimensão. filipa fernandez

Algo se fará

Em seis anos, o festival saiu das muralhas da vila e apresentou-se nas ruínas da cidade romana de Ammaia, em Portalegre, em Castelo de Vide, em Valencia de Alcántara. “O nosso mindset não lida muito bem com o conceito de fronteira. Para nós, Valencia é um concelho vizinho. Fazemos sempre dois, três ou quatro concertos em Espanha e somos muito, muito bem recebidos”, diz Daniel.

O castelo de Marvão, no entanto, continua a ser o local mais simbólico para os concertos. Tem de se passar as duas portas da entrada, percorrer o primeiro terreiro e entrar na porta ao fundo para aceder ao segundo terreiro, mais pequeno, onde geralmente se apresentam as orquestras de maior dimensão. Nesse sítio, Daniel puxa do telemóvel e mostra o vídeo de uma soprano a cantar ali, gravado na edição de 2019. Na assistência estão umas 500 pessoas, mas não se ouve uma mosca. O silêncio de então é semelhante ao de agora. Apenas a voz se ergue acima de tudo.

Daniel Boto traz na memória o marvanense que ouviu uma ópera pela primeira vez na vida durante o festival. Ele estava reticente, não queria ir, tinha medo de não gostar. “Ainda bem que a minha filha me chateou para vir!”, comentou no fim. “O homem estava quase a chorar”, recorda Daniel. “Ninguém tem problemas com a música clássica. Pelo contrário! Quem nunca ouviu e ouve pela primeira vez diz sempre ‘Isto é tão mais maravilhoso do que eu imaginava!’”, sorri Christoph Poppen.

Ao longo das edições, o festival foi também alargando o espectro da oferta, complementando agora os concertos com exposições e jantares temáticos. Recentemente foi criada a Academia Internacional de Marvão para a Música, Artes e Ciência, dirigida por Gil Fernandes, um dos produtores do festival, que tem como objectivo cimentar o que já se conquistou. “O festival é algo só para o Verão, mas a academia é uma coisa para todo o ano, para poder atrair músicos, artistas e cientistas de todo o mundo”, explica Poppen. O projecto recebeu financiamento do Orçamento Participativo de Portugal e tem o apoio da Direcção Regional de Cultura do Alentejo.

Na cabeça de Christoph pairam ainda outras ideias: “Um dos meus sonhos, a longo prazo, é poder construir uma sala de concertos em Marvão. Isso vai atrair ainda mais pessoas e podemos fazer concertos durante todo o ano.”

Mas é no curto prazo que têm de pensar agora. Em 2021 (com datas previstas para entre 23 de Julho a 8 de Agosto), o maestro gostaria de apresentar o que estava programado para este ano, incluindo todas as sonatas para piano e todos os concertos para quarteto de cordas de Beethoven. Sem festival presencial em 2020, fizeram-se alguns concertos com transmissão na internet, pela primeira vez, mas o evento vive muito da presença física. “Acho que ainda é possível”, comenta Christoph. “Alguma coisa faremos, isso é certo. Não podemos ficar parados”, garante Daniel Boto.

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