Os UHF na pandemia: “As pessoas vão lembrar-se: isto aconteceu e eu venci isto”
Meia centena de intervenções no Facebook e 27 concertos caseiros deram origem a um livro e um CD com chancela dos UHF. Sai esta sexta-feira, De Almada para o Mundo.
No início da pandemia, o fundador e líder dos UHF, António Manuel Ribeiro, começou a publicar textos de reflexão no Facebook. Mal sabia que desse seu gesto iria nascer um livro e um CD, lançados esta sexta-feira com o título De Almada para o Mundo. O livro reúne 52 textos e uma entrevista em 128 páginas e o CD integra onze canções gravadas no último dos 27 miniconcertos baptizados de Momentos Musicais Caseiros (MMC), em 26 de Setembro. Entretanto retomados, diz António Manuel Ribeiro ao PÚBLICO: “Porque as pessoas pedem, e isto é uma forma de estar ligado. Há muita gente isolada que não está a viver isto como nós, aceitando. Porque a Humanidade já viveu isto.”
Os textos no Facebook surgiram por impulso: “Perante o medo, enfrento a realidade. O que eu senti na altura, pelo que as pessoas iam escrevendo e por outras que eu ouvia ao telefone, é que as pessoas estavam completamente paralisadas de medo. Que é o pior. E senti que tinha de transmitir calma, transmitir uma necessidade de enfrentar a situação de forma racional: nem medo, nem superstição, nem religiosidade extrema. A minha conversa foi sobretudo para apaziguar as pessoas, para ajudar a combater o medo.”
Pandemia e paranóia
A reunião dos textos em livro partiu dos seus seguidores: “Ao terceiro ou ao quarto, já não sei bem, começam a dizer-me: ‘Isto tem de sair em livro, é importante para nós’.” Quanto aos miniconcertos, nasceram por sugestão dos músicos. O primeiro texto foi publicado no Facebook a 13 de Março e o primeiro Momento Musical Caseiro (MMC) ocorreu no dia 21 desse mês, repetindo-se depois, sem falhas, sempre aos sábados. Com António Manuel Ribeiro (voz e guitarra) e mais dois músicos dos UHF, Ivan Cristiano, (baterista) e António Côrte-Real (guitarrista). Em trio, às vezes em duo ou até a solo.
“Uma emissão? Nunca tinha pensado nisso. Mas começámos a fazer, directamente para a câmara, e foi crescendo. Quando fechei o livro, estávamos a ser vistos em 29 países e em Portugal inteiro [a lista de localidades, compilada a partir dos comentários no Facebook, regista 384, de A-do-Barbas a Zambujal].” Aí, as coisas tornaram-se mais sérias, diz António Manuel Ribeiro: “Embora meta muita brincadeira, porque um tipo tem de estar bem-disposto. As pessoas estão a viver uma paranóia: há a pandemia, vamos ter a pandemia económica, que vai ser muito dura, e há a pandemia psicológica! Matam mulheres à facada, e isso acontece em casa, porque ninguém vem para a rua com uma faca! E a violência: a APAV está farta de deixar alertas para o que está a acontecer. Se nós pudermos ajudar a descomprimir a situação, fantástico! Não sou guru nem profeta, mas a minha tónica é transmitir a minha forma de encarar a vida. Não me entrego às derrotas, não me lamurio, não vivo no sofrimento penoso e religioso, nada disso; prefiro enfrentar a realidade e pensar como vou sair desta. O que faz a gota de água quando encontra uma pedra? Contorna-a, não discute com a pedra!”
Um disco de combate
O disco, gravado numa só sessão com meios profissionais, inclui onze canções de várias épocas: Um MMS teu, Porquê só ela, No jogo da noite, Boogie com o sr. U, Soube sempre que eras tu, O povo do mundo, Não me deixes ficar aqui, Nove anos, Portugal – somos nós, Hey! Hey! (‘Bora lá) e A saudade é uma ressaca. “A transmissão é feita através do IPhone, mas a gravação foi feita em multipistas e foi misturada num estúdio profissional, onde normalmente gravamos e misturamos, e foi masterizada nesse estúdio pelo mesmo técnico, como se fosse outro disco qualquer.” Da assistência, via internet, só o silêncio. “É um disco ao vivo, mas não tem palmas. Mais tarde, vamos recordar isto com uma boa onda e as pessoas vão lembrar-se: isto aconteceu e eu venci isto.”
O resto ficou adiado. Havia um concerto dos UHF no Bataclan, em Paris, em 4 de Abril, foi adiado para 29 de Novembro, mas acabaram por ser ambos cancelados e agora sem marcação: quando for possível, será. O tema, já composto, Au Bataclan (canção pela paz), irá integrar um novo álbum do grupo, Podem Os Oceanos Arder?, que devia ter sido lançado em Setembro de 2020, mas também esse foi adiado, diz António Manuel Ribeiro: “Há outro disco que está a ser feito, porque há outra realidade e isto entretanto parou tudo. Podem Os Oceanos Arder? é um disco conceptual e eu pu-lo de lado, neste momento, para fazer um disco de combate, imediato, dez ou onze canções. Tem de ser uma coisa alegre, com ritmo, muito para fora de nós. Sempre que houve uma tragédia na Humanidade, a música deu um salto: a Grande Depressão e o fox-trot ou o rock’n’roll depois da II Guerra Mundial. Não sei o que vai acontecer desta vez, mas a alegria tem de estar presente, para voltarmos aos afectos. Vamos ver quanto tempo irá demorar.”
És Meu, Disse Ela na RTP
Entretanto, está em andamento a adaptação televisiva (para uma série na RTP) do livro És Meu, Disse Ela (Guerra & Paz, 2018), onde António Manuel Ribeiro conta, em quase 500 páginas, a perseguição sistemática e paranóica de que foi alvo por uma desconhecida entre 2003 e 2012, um caso de stalking que chegou a julgamento.