Justiça francesa condena cúmplices dos ataques ao Charlie Hebdo e ao supermercado judeu
Tribunal de Paris decretou penas de prisão entre os quatro e os 30 anos e condenou 14 pessoas por crimes diversos. Há um antes e um depois dos atentados de 2015 – mas o debate que suscitaram permanece bem vivo em França e no jornal satírico.
Os 14 cúmplices dos ataques terroristas à redacção do jornal satírico Charlie Hebdo e ao supermercado judeu Hyper Cacher, em Paris, em Janeiro de 2015, foram declarados culpados e foram condenados, por crimes diversos, por um tribunal da capital francesa, nesta quarta-feira. As condenações variam entre os quatro e os 30 anos de prisão; vários cúmplices viram ser-lhes retiradas as acusações de terrorismo.
Os atentados de 2015 fizeram 17 mortos, incluindo jornalistas e uma agente policial, e marcaram o início de um período negro da História de França, com vários e sucessivos ataques de inspiração fundamentalista islâmica, acompanhados por um debate intenso sobre a liberdade de expressão, a laicidade, os direitos individuais e a segurança no país.
Os autores dos ataques – os irmãos Said e Cherif Kouachi, ao Charlie Hebdo, a 7 de Janeiro, e Amedy Coulibaly, ao supermercado, a 9 de Janeiro – foram abatidos pelas autoridades na altura. No banco dos réus sentaram-se, por isso, pessoas que, através de financiamento, apoio logístico ou ligações a redes criminosas, eram suspeitas de cumplicidade.
Entre os 14 acusados, porém, três foram julgados e condenados na sua ausência. Hayat Boumeddiene, companheira de Coulibaly, de 32 anos, foi uma dessas pessoas. A única mulher do grupo é alvo de um mandado de captura internacional, mas não se sabe se estará viva, depois de se ter juntado ao grupo jihadista Daesh, na Síria.
Boumeddiene foi também uma das pessoas que tiveram a pena mais pesada, tendo sido condenada a 30 anos de cadeia, pelos crimes de financiamento de terrorismo e pertença a rede criminosa terrorista. Ali Riza Polat, considerado figura-chave dos atentados, também foi condenado a 30 anos de prisão, ao passo que Amar Ramdani foi condenado a 20 e Willy Prévost a 13. Os restantes terão de cumprir penas entre os quatro e os dez anos de cárcere.
“O facto de terem escolhido as vítimas precisamente por serem jornalistas, membros das forças de segurança ou alguém de fé judaica evidencia, só por si, o desejo [dos criminosos] de semearem o terror nos países ocidentais”, sublinhou o juiz que presidiu à sessão.
Fim de capítulo?
A leitura das sentenças e, antes disso, o próprio julgamento – iniciado em Setembro – tinham sido projectados na cabeça de grande parte da sociedade francesa e dos seus responsáveis políticos como uma espécie de fim de capítulo ou de oportunidade de renovação do debate público.
Foi um processo duro, catártico e trágico, porque forçou o país a reviver os pormenores de dois crimes violentíssimos e chocantes – e todos os outros que lhes seguiram, como a noite de terror do Bataclan (131 mortos, em Novembro de 2015) ou o atropelamento em massa de Nice (86 mortos, em Julho de 2016) –, mas foi sempre visto como necessário para se virar a página.
A decapitação de um professor de liceu, por ter mostrado caricaturas do profeta Maomé, numa aula sobre liberdade de expressão numa escola dos arredores de Paris, e o assassínio bárbaro de três pessoas na Basílica de Notre-Dame, outra vez em Nice, em Outubro deste ano, impediram, no entanto, qualquer hipótese de cicatrização colectiva acelerada.
O próprio Presidente, Emmanuel Macron, repetiu, por diversas vezes nas últimas semanas, que a “França está sob ataque” e prometeu que não vai deixar que o fundamentalismo islâmico subverta os valores e os direitos individuais franceses, como a liberdade de expressão ou de culto – posições que lhe valeram críticas imensas em vários países de maioria muçulmana e, particularmente, a Turquia.
Por outro lado, o seu Governo reagiu aos ataques com impetuosidade, autorizadas rusgas, detenções, planos de deportação e investigação ou desmantelamento de organizações muçulmanas entendidas como extremistas, incluindo 76 mesquitas e dezenas de líderes religiosos.
Seis anos depois dos ataques ao Charlie Hebdo, e poucas semanas volvidas da nova vaga de atentados em França, o grande debate sobre a liberdade de expressão e a laicidade continua tão actual como sempre.
Liberdade
O catalisador desta nova etapa sombria da História de França foi o jornal satírico, que, à custa de um crime horrendo nas suas instalações de Paris e de um episódio traumático, que estará sempre presente entre os seus funcionários, ganhou uma relevância e uma responsabilidade tais, que quase já se tinha esquecido de atribuir a si próprio, enquanto símbolo máximo da liberdade de expressão em França – e em todo o lado onde ela se diz sagrada.
Na semana em que arrancou o julgamento, em Setembro, o Charlie Hebdo decidiu republicar os cartoons que motivaram o ataque terrorista de 2015 – caricaturas do profeta Maomé.
Fê-lo não como um desafio aos que consideram uma blasfémia caricaturar figuras religiosas ou divinas, mas para relembrar os leitores de que, no fundo, e mesmo tendo em conta o seu objectivo, seja ele pedagógico, provocador ou simplesmente humorístico, o resultado final não é mais do que um desenho num papel.
“A publicação destes cartoons na semana do início do julgamento aos ataques de 2015 é essencial para nós. Todas as justificações que se poderiam opor [à publicação] são mera cobardia política ou jornalística”, lê-se no editorial do Charlie Hebdo de 4 de Setembro.
O jornal fez 50 anos em Novembro, uma história recheada de polémicas, inimizades, censura, humor, risos e, acima de tudo, uma forma muito própria de promover a sua liberdade e a liberdade em França.
As condenações desta quarta-feira constarão, seguramente, do seu próximo catálogo de cartoons. França pode ainda não estar preparada para virar a página. Mas o Charlie Hebdo tem sempre a edição seguinte para cicatrizar, recomeçar e fazer tudo outra vez.