A imigração não é um assunto de polícia
A imigração não é um assunto de polícia e o SEF deve ser extinto. Nunca como hoje houve condições para fazer o que já se discutia, há muito, com mais ou menos discrição.
1. A gestão política da imigração nasceu torta, em Portugal. Nasceu, recorde-se, no pós 25 de Abril, quando o país passou a ter imigração, numa fase inicial sobretudo na sequência da descolonização. O medo de uma imigração de grande volume com origem em Angola e Moçambique dominou a perceção do tema pelas elites políticas da época. Agindo como se o país estivesse em risco iminente de ser inundado de imigrantes, mudou-se a lei da nacionalidade e adotou-se um enquadramento legislativo orientado pelo princípio securitário expressamente afirmado nas Grandes Opções do Plano de 1992: “um sentido restritivo de modo a poder conter grandes vagas migratórias.” É neste quadro que, com naturalidade, se entrega a concretização da política migratória a uma polícia, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
2. Nos anos 90, o SEF iria perder parte das suas funções para o Ministério do Trabalho e para o que é atualmente o Alto Comissariado para as Migrações. Manteve, contudo, até hoje, o monopólio do controlo da fronteira e do processamento da documentação dos imigrantes. E manteve, também, uma mistura tóxica: a coexistência, num mesmo organismo, da regulação dos fluxos de imigração com a participação ativa no combate ao tráfico de seres humanos. Tóxica porque assim se consolidou a ideia de que a imigração tinha que ser um assunto de polícia, pois no âmbito das migrações havia crimes a combater. Ouviram-se por essa altura, vezes de mais, discursos políticos afirmando a existência de três componentes das políticas de imigração: a regulação dos fluxos migratórios, a promoção da integração dos imigrantes e o combate ao tráfico de pessoas. Imaginem o que se diria se, falando de economia, se afirmasse haver na política económica três componente fundamentais, por exemplo, o controlo da inflação, a promoção do emprego e do crescimento e o combate ao crime económico. Ou noutro domínio qualquer, pois não há setor em que não haja atividades criminais associadas. E não é por isso que o modo de organização das nossas sociedades repousa na criação de polícias especializadas na tutela de cada domínio institucional. Impensável mesmo nos pesadelo mais orwellianos.
3. A imigração não é um assunto de polícia e o SEF deve ser extinto. Nunca como hoje houve condições para fazer o que já se discutia, há muito, com mais ou menos discrição. A decisão é difícil, até porque haverá sempre quem se lembre que o SEF teve um interlúdio na sua história em que vingou na sua atuação uma orientação humanista inesperada. O interlúdio, porém, deveu muito à sua direção da altura, em particular ao seu diretor, Jarmela Palos, que, maltratado pelo Estado, viu a sua carreira interrompida dramaticamente. E com ela o interlúdio de boa memória. Mas a bondade das instituições não pode depender dos acidentes da sua liderança. O SEF afirmou sempre, pela sua simples existência, mesmo quando foi bem governado, a ideia de que a imigração era, antes de mais, um assunto de polícia, um assunto de segurança. Por isso, um cidadão estrangeiro é ainda hoje obrigado a renovar a sua documentação num balcão da polícia, no caso do SEF, uma espécie de tratamento de suspeito até prova em contrário. Numa polícia, repito, e não numa qualquer conservatória do registo civil, como acontece com a generalidade dos cidadãos nacionais, ou numa agência sem funções policiais, como as que existem em vários países europeus.
4. Um ambiente em que a perceção dominante, institucionalmente induzida, é a de que a imigração constitui uma ameaça, é um ambiente em que é mais fácil a emergência de comportamentos xenófobos agressivos de modo recorrente. Por isso o SEF não tem emenda. Não porque sejam melhores ou piores os seus agentes, embora os haja muito maus, como se viu, mas porque a sua conceção como polícia da imigração é em si mesma facilitadora de más práticas. E, por isso, o SEF deve acabar. Sem dramas e sem uma culpabilização coletiva que a maioria dos seus agentes não merece. Mas porque é uma má solução institucional. As funções hoje concentradas no SEF podem ser distribuídas por organismos que já existem. O combate ao tráfico de pessoas e à criminalidade associada pode passar para a Polícia Judiciária. O controlo da fronteira pode ser assegurado por um serviço especializado integrado na PSP. A documentação dos imigrantes pode ser tratada nas conservatórias do registo civil, mesmo que estas tenham para tal que ser parcialmente reformadas. E a gestão do acolhimento de imigrantes e refugiados pode passar para a Secretaria de Estado da Imigração e para os organismos sobre a sua tutela, como o Alto Comissariado para a Imigração, deixando de ser tutelados pelo Ministério da Administração Interna, assim se quebrando, de vez, a ligação primordial, mas simbolicamente inadequada e perigosa, entre migrações e segurança.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico