Democratização condicionada em Angola: entre o activismo cívico e a política activa
A intolerância e o ideal de pensamento único têm sido marcas fortes dos “activistas” angolanos. Estes supostos paladinos da democracia têm feito uma oposição que não incentiva a elevação do debate e reverte os preceitos da democracia em Angola.
No livro Como Morrem as Democracias, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt deixaram bem claro que o processo de democratização dos Estados não tem fim. Independentemente da maturidade política, não há garantia de que todos os avanços democráticos não sejam bruscamente destruídos.
A democracia subsiste por várias razões. Além do primado do Estado de direito e das instituições determinantes para o seu funcionamento, ela persiste também devido a acordos não escritos ou por meio de práticas reiteradas que não são necessariamente legisladas, mas que se aplicam em função da prática comum que diversos atores políticos de um determinado Estado realizam ao longo dos anos.
Porquanto, tal como lemos em Robert A. Dahl (1998), o regime democrático obedece a diversos critérios. Um dos quais é a participação efectiva na política. Isto implica, entre outras coisas, que todos têm o direito de emitir as suas opiniões e se expressar livremente, na medida em que a democracia visa dar voz e vez a todos, e não a um grupo seleto de indivíduos. Ninguém deve ser coibido de apresentar a sua opinião.
Em Angola, a democracia é uma conquista de e para todos. A democratização é encarada como um processo irreversível, resultante de cedências do poder e tem como protagonista-mor o MPLA. Mas também se deflagrou de uma forma estratégica para adaptar-se ao ambiente do pós guerra fria, cumprir as novas demandas no contexto pós-guerra civil e afigura-se como um mecanismo de gestão do poder político.
Uma das representações da abertura política que o país registou a partir de 1991/2 é a emancipação da sociedade civil – cuja importância no processo de paz, reconciliação e aprofundamento da democracia é muito grande.
Nestes quase trinta anos desde o início do processo de democratização, um dos fenómenos mais notáveis é o aparecimento do autodenominado Movimento Revolucionário (doravante Movimento Revú), composto por grupos e personalidades cuja actividade se limita essencialmente à contestação do MPLA. Apresentam-se sobretudo como activistas cívicos, mas também engloba académicos, jornalistas e artistas. São, portanto, considerados como elementos da sociedade civil, apartidários (apesar de apelarem ao voto e fazerem campanha a favor da oposição, especialmente a UNITA) e, nos últimos tempos, têm liderado a contestação ao poder.
Não é difícil compreender a identidade e os objectivos do Movimento Revú. Nos principais veículos de comunicação onde se expressam – nas redes sociais, mas também nos seus portais e afins –, deixam claro o que são e o que querem.
Desde que João Lourenço assumiu o poder, Angola tem sido apontada como um dos países africanos com mais progressos na governação (ver, por exemplo, a progressão nos índices Mo Ibrahim 2020; The Economist 2020), apesar das várias dificuldades que o país apresenta, especialmente do ponto de vista da resolução dos problemas económicos, situação agravada pela pandemia de covid-19.
Recentemente, o mais alto mandatário do país convocou representantes da juventude angolana, incluindo os “revús”, para um diálogo democrático que visou recolher as preocupações, esclarecer e alcançar soluções comuns para os problemas enfrentados. Como era de esperar, alguns “ativistas” minimizaram a importância do acto e publicaram textos a afirmar que não participariam se convocados, outros simplesmente não compareceram, interrompendo esta forma construtiva, mais eficiente e eficaz de solucionar os problemas.
Esta atitude não foi, de forma alguma, admirável. Ou seja, admiraria se o escopo dos “revú” fosse essencialmente cívico. Não faria sentido um activista que levanta a bandeira da democracia, tolerância, do diálogo e das soluções pacíficas em prol da estabilidade, menosprezar um encontro que justamente promoveu estes valores. Algumas pessoas condenam os “revús” por menosprezarem tal possibilidade e vilipendiarem os poucos “corajosos” que lá estiveram, como são os casos de Nito Alves e Mbanza Hanza, dois militantes do autoproclamado “Movimento Revú” que integraram o badalado processo dos 15+2. Os “revús”, pelo menos, os líderes do movimento, aqueles que constroem as narrativas e programam as ações, são políticos... políticos de oposição. Na verdade, aparentemente uma oposição que não tem interesse, não quer dialogar – até a UNITA foi representada por Agostinho Kamuango, líder da Juventude daquele partido (embora Nelito Ekuikui, Ginga Savimbi e outros políticos da UNITA mais próximos dos “revús desprezassem o acto).
Estes supostos paladinos da democracia têm feito uma oposição que não incentiva a elevação do debate e reverte os preceitos da democracia em Angola, fazendo com que o processo não siga o rumo que deve necessariamente seguir.
Esta reversão sucede na medida em que, por um lado, os “revús” não percebem que a democracia se constrói por meio de boas práticas reiteradas não legisladas, como foi este encontro que o Presidente de Angola manteve com a juventude. Por outro, eles não reconhecem o critério da participação efetiva de determinadas pessoas. O que até parece estranho ou cómico: um individuo que luta para que o processo democrático seja cada vez mais consolidado, mas age igualmente contra este objetivo propalado.
A intolerância e o ideal de pensamento único tem sido marcas fortes dos “activistas” angolanos. Para estes indivíduos, uma opinião só é válida quando for contra as acções e discursos do MPLA e do executivo ou quando estiver de acordo com as suas ideias ou for favorável a oposição parlamentar, principalmente a UNITA de Adalberto da Costa Júnior. Quando alguém, mesmo que não seja um militante do MPLA, concorda com o partido no poder, esta opinião deixa de ser prestável e uma campanha pública de difamação é realizada contra a pessoa. Há uma série de adjetivos e frases depreciativas que se usam para designar tais pessoas – que são ou passam a ser vistas como “vendidas”, “bajú” (de um bajulador), alguém que não se respeita, enfim... E, no entendimento da maioria desses “ativistas”, tais adjetivações não são validas para a oposição. A bajulação, por exemplo, só pode acontecer quando alguém elogia ou destaca positivamente alguma ação do executivo ou do líder do MPLA.
Nas redes sociais, o seu habitat capital, mobilizam os seus seguidores para práticas recorrentes de assassínio de caracter, desferindo incontáveis ofensas contra aqueles que corroboram ou apoiam o MPLA, ou que simplesmente dizem ou fazem algo de que não gostam, chegando mesmo a atacar pessoas cuja trajetória na contestação ao poder foi notável, como os casos de Rafael Marques, João Paulo Ganga e, recentemente, David Mendes (que foi advogado no processo 15+2).
Estas atitudes criam um ambiente onde prevalece o pensamento único, fazem com que as pessoas com opinião contrária à sua tenham medo de se expressar. Em outras palavras, eles têm um poder simbólico e estão a destruir o que Michel Foucault concebeu como parrésia, que pressupõe falar a verdade sem nenhum receio.
Normalmente, em termos de localização histórica, quem tem feito isto são aqueles que estão no poder, mas em Angola o cenário actual é muito peculiar e preocupante. Quem está a destruir a parrésia são sobretudo aqueles que se opõem aos que estão no poder. Quem pensa o contrário deles se coíbe, não se manifesta, pois sabe que senão estará a candidatar-se para um linchamento virtual ou até mesmo está a correr o risco de vida.
Consequentemente, todos os avanços no processo democrático angolano que permitem aos “revús” o exercício das suas actividades correriam o risco de desaparecer abruptamente, caso os detentores do poder decidissem dar uma resposta ao mesmo nível, o que seria, aliás, o seguimento de um padrão, conforme evidenciado por Ziblatt e Levitsky.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico