Os decisores da ciência portuguesa acreditam em milagres
A FCT estabeleceu regras para reduzir artificialmente o número de candidaturas. Proibiu, por exemplo, a apresentação de mais de um projecto por cada investigador principal, mas ao mesmo tempo obriga cada projecto a ter dois investigadores principais.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) são os últimos decisores da estratégia científica nacional. Há já muito tempo que são questionados pelo subfinanciamento crónico da ciência portuguesa e pela falta de regularidade, transparência e estratégia na distribuição do mesmo. No recente Concurso de Projectos em Todos os Domínios Científicos (PTDC) foram aprovadas para financiamento apenas 300 das cerca de 6000 candidaturas recebidas (taxa de aprovação: 5%).
Estes resultados provocaram a justa indignação por parte da comunidade científica, porque os concursos de PTDC são as principais e mais abrangentes fontes de financiamento directo para a maior parte dos laboratórios do tecido científico nacional. No entanto, são secundários na agenda dos nossos excelentíssimos decisores, que insistem em dedicar-lhes fundos insuficientes por motivos desconhecidos. Se na edição anterior dos PTDC (há três anos) houve uma taxa de sucesso sem precedentes (35%), foi fruto de uma casualidade (um milagre!) que pôs os nossos decisores contra a parede: tinham um superavit de fundos estruturais europeus que iriam perder se não fossem utilizados (Helena Pereira, diretora da FCT, dixit).
Os cientistas e os decisores têm interesses e preocupações divergentes. Os cientistas dirigem pequenas – mas muito competitivas – empresas que necessitam de um financiamento regular para realizar projetos complexos e a longo prazo. No entanto, os nossos excelentíssimos decisores, em vez de se preocuparem em melhorar a forma pela qual a ciência é financiada em Portugal, preocupam-se em cultivar uma imagem de competência baseada em estatísticas e rankings. Imagem que, de facto, é o resultado da elevada produtividade dos cientistas portugueses, apesar da péssima gestão dos decisores (mais um milagre!).
É neste contexto que se percebe melhor o golpe do efeito que a FCT deu recentemente. Apenas 20 dias após o lançamento dos últimos resultados, a FCT lançou uma nova convocatória de PTDC para acalmar a comunidade científica e tentar colmatar a falha de regularidade. Os mais optimistas valorizaram positivamente o facto de a FCT abrir dois concursos em anos consecutivos, facto inédito nos últimos dez anos. Mas há que ler as letras pequenas, porque esta nova convocatória será mágica: com o mesmo orçamento do que a anterior (75 milhões) irão duplicar (pelo menos) a taxa de aprovação. Como farão o milagre da divisão do pão e dos peixes?
Por um lado, os nossos excelentíssimos decisores duplicarão artificialmente o número de projectos financiados, dedicando um quinto do dinheiro a micro-projectos de menor duração e com um orçamento muito mais reduzido. Aqueles que ganharem os projectos curtos terão de voltar a procurar fundos no ano seguinte (se houver convocatória), duplicando, triplicando ou quintuplicando os seus esforços para conseguir o mesmo dinheiro. Mas isso não é um problema do MCTES ou da FCT. Não é o seu tempo, nem o seu trabalho, nem a sua esperança.
Por outro lado, estabeleceram uma série de regras destinadas a reduzir artificialmente o número de candidaturas. Proibiram, por exemplo, a apresentação de mais de um projecto por cada investigador principal, mas ao mesmo tempo obrigam cada projecto a ter dois investigadores principais. O ambicioso objectivo é, portanto, reduzir as candidaturas a metade da população de investigadores doutorados portugueses. Também irão aplicar medidas punitivas aos investigadores principais que obtiverem pontuações inferiores a 5 pontos, não lhes permitindo apresentar-se como investigador principal no concurso seguinte (para aumentar a taxa de aprovação em futuras convocatórias).
Os cientistas percebem que parte destas medidas se destinam a distribuir os muito limitados fundos, e evitar que os laboratórios maiores, com mais doutorados integrados na equipa e mais competitivos, não sejam os únicos a beneficiar do financiamento disponível. No entanto, prevejo que serão os laboratórios mais pequenos e com menos pessoal (muitos sem doutorados na equipa para além do coordenador) os mais afectados se as regras não mudarem e o financiamento não aumentar. O que é ainda mais grave, sendo este tipo de laboratório o mais abundante em Portugal.
O problema dos excelentíssimos decisores será assim milagrosamente resolvido. Quando este concurso terminar, o ministro Manuel Heitor poderá dizer no Conselho de Ministros que a taxa de aprovação foi significativamente melhor que no concurso anterior. Helena Pereira, directora da FCT, poderá gabar-se nos meios de comunicação de terem taxas de aprovação mais próximas das europeias. Poderão mesmo indicar que estão a fazer convocatórias anuais, porque houve duas em dois anos consecutivos, apesar de nos últimos dez anos termos tido apenas cinco convocatórias com normas e orçamentos ridiculamente arbitrários.
Infelizmente, nós, os cientistas, não acreditamos em milagres. Deve ser por isso que os nossos problemas não se resolvem.
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