Resultados negativos e exigências do regulador “ameaçam” futuro da Valorsul
Câmaras da região de Lisboa pedem reunião urgente a António Costa e ao ministro do Ambiente e já há quem defenda a reversão da privatização da maior empresa portuguesa de tratamento de resíduos sólidos urbanos.
Os resultados negativos registados no exercício de 2019 e o conjunto de “exigências” colocadas pela Entidade Reguladora do Sector das Águas e Resíduos (ERSAR) estão a deixar os municípios accionistas da Valorsul muito preocupados com o futuro da sociedade liderada pela Empresa Geral de Fomento (grupo Mota-Engil). As tarifas cobradas aos 19 municípios do maior sistema português de tratamento de resíduos sólidos urbanos subiram de forma “brutal” já este ano e a decisão da ERSAR de “obrigar” a Valorsul a equiparar os preços da electricidade que produz aos do restante mercado energético poderá no entender dos municípios, motivar mais um “rombo” na maior fatia das receitas da empresa.
Entre as autarquias há até já quem defenda uma reversão do processo de privatização da Valorsul, decidido pelo primeiro governo de Passos Coelho, com a privatização, em 2014, de 100% do capital da Empresa Geral de Fomento (EGF), que integrava, então, o grupo Águas de Portugal. As câmaras que mantêm participações mais significativas no capital da Valorsul (Lisboa, Loures, Vila Franca de Xira e Amadora) já pediram uma reunião urgente ao primeiro-ministro e ao ministro do Ambiente para avaliar as perspectivas de futuro da Valorsul.
De facto, no exercício de 2019, a Valorsul registou um saldo negativo da ordem dos 2, 8 milhões de euros, facto que nunca tinha acontecido nos 26 anos de existência da empresa, fundada em Setembro de 1994 pela Parque Expo, pela EGF, pela EDP e pelas câmaras de Amadora, Loures, Lisboa e Vila Franca de Xira. No ano passado, a empresa que gere a central incineradora de São João da Talha registou um volume de negócios de 54 milhões de euros, bastante menos do que no ano de 2017 (63 milhões) e do que no ano de 2018 (60 milhões). Como consequência, a Valorsul passou de um resultado positivo de cerca de 10 milhões de euros em 2017 e 2018, para um saldo negativo de perto de 3 milhões de euros. No relatório e contas do exercício de 2019, a que o PÚBLICO teve acesso, a administração da empresa constata que houve uma diminuição de 10, 8 milhões de euros nas receitas provenientes do tratamento de resíduos, motivada pela redução das quantidades tratadas e, “essencialmente, pelo corte bastante expressivo na tarifa implícita definida pela ERSAR para 2019”, com uma redução da ordem dos 66%.
A maior fonte de receita da Valorsul é a venda da electricidade produzida na central incineradora, que, em 2019, gerou um encaixe de 31 milhões de euros, correspondente a cerca de 52% do volume de negócios da empresa. Já a venda de materiais recicláveis gerou 14, 7 milhões de euros.
Neste cenário, a administração da Valorsul mostra-se desde logo muito preocupada com as “grandes incertezas” de 2020, numa altura em que a pandemia ainda não registara o impacto económica que hoje conhecemos. Assim, no Relatório e Contas de 2019, os responsáveis da Valorsul anunciam que, “face à degradação de resultados já verificada em 2019” a empresa “desencadeará os mecanismos previstos no Regulamento Tarifário de Resíduos”, de forma a manter a sua “sustentabilidade económica-financeira”. Mostram-se, igualmente, preocupados com a decisão da ERSAR de impor que a energia produzida pela Valorsul, a partir de meados de 2020, passe a ser vendida pelos valores de mercado. “Mesmo neste cenário adverso e de enfraquecimento que lhe está a ser imposto pelo regulador, a gestão e os trabalhadores da Valorsul continuarão a dar o seu melhor”, conclui a administração.
Municípios preocupados
Estas medidas e este cenário difícil na gestão da empresa estão, também, a gerar muita preocupação nos 19 municípios servidos pela Valorsul (Lisboa, Loures, Amadora, Odivelas, Vila Franca de Xira e mais 14 autarquias da região Oeste englobadas na Associação de Municípios AMO Mais). “Estamos muito preocupados. Acho que a ERSAR não percebe o que está em causa. Ou não quer perceber”, lamenta Alberto Mesquita, autarca socialista que preside à Câmara de Vila Franca de Xira, um dos municípios fundadores da Valorsul, que detém uma participação de 4,61% no capital da empresa.
O autarca de Vila Franca sublinha que, “pela primeira vez, a Valorsul teve um resultado negativo de 3 milhões de euros, quando habitualmente tinha saldos positivos de 7, 8, 10, 15 milhões. A ERSAR está a criar dificuldades, que não sei quais vão ser os contornos finais disto tudo. Ao pôr o preço da energia ao nível de todas as outras empresas do sector vai gerar grandes dificuldades de concorrência e é mais um valor em termos de receitas que se perde. O aumento é justificado pelas exigências da ERSAR. Mais grave do que isso são as consequências que pode vir a ter”, alerta o presidente da Câmara vila-franquense, criticando, igualmente, o “aumento brutal” das tarifas cobradas aos municípios, exigido pela ERSAR de “uma forma absolutamente incompreensível” e que “pode vir a pôr em causa a continuidade da Valorsul”. Alberto Mesquita recorda, ainda, que a Valorsul atravessa uma fase em que deveria fazer grandes investimentos na manutenção e na ampliação das linhas da central incineradora de São João da Talha, mas que tudo isto tem sido prejudicado pelas dificuldades financeiras agora vividas pela empresa.
“Desde que está a ser gerida pelo Grupo Mota-Engil as coisas estavam a correr bem. Mas se continuarem assim, o que vai acontecer é que a Valorsul passa para os municípios. Não vai morrer. Não vamos deixar que isso aconteça. O senhor primeiro-ministro sabe desta matéria, o senhor ministro do Ambiente sabe desta matéria. E foi-lhes solicitada uma reunião com carácter de urgência para tratar desta situação”, vincou o autarca.
Já Nuno Libório, vereador da CDU na Câmara de Vila Franca de Xira, questionou como é que a Valorsul chegou a esta situação depois de ter visto privatizada a maioria do seu capital e se não haverá aqui alguma tentativa de gerar argumentos para levar à privatização dos 48% do capital detidos pelos municípios. “Haverá aqui alguma tentativa orquestrada de prejudicar o funcionamento de uma empresa que foi criada pelos municípios e que precisa de continuar a existir?”, concluiu.
O PÚBLICO procurou obter mais esclarecimentos junto da EGF e da ERSAR, mas, até à hora de fecho desta edição, não tivemos resposta.