Da “voz silenciada” pela pandemia resultou um almoço de união da cozinha portuguesa
José Avillez convidou oito cozinheiros portugueses para criar um menu inspirado nas receitas de um chef internacional “silenciado” pela pandemia, mote desta edição do evento gastronómico Gelinaz. No Belcanto, foi um momento de “união positiva” e um “aproximar à normalidade” perdida.
O alinhamento da carta foi decidido às 8h do próprio dia e o empratamento final de cada receita revelado a poucos minutos de arrancar o primeiro serviço deste almoço a vinte mãos. Até há poucos dias, ainda se temia que o evento não se pudesse realizar devido às restrições impostas pelo decreto de novo estado de emergência, mas tudo decorreu sem imprevistos. Na cozinha do Belcanto, em Lisboa, calma apesar do aparato e da expectativa, as jalecas de cada chef convidado ajudavam a distinguir o corpo de máscaras que ultimava cada pormenor nas diferentes bancadas.
A proposta do Gelinaz, evento gastronómico internacional criado por Andrea Petrini, passa, este ano, por homenagear as “vozes silenciadas” de cozinheiros que, um pouco por todo o mundo, se viram forçados a fechar portas, definitiva ou temporariamente, ou a adiar projectos devido à pandemia.
Na troca mistério de chefs e de receitas de todo o globo que marca o conceito do evento, a ideia era que, desta vez, cada um dos chefs participantes – em Portugal, a curadoria ficou a cargo de José Avillez - escolhesse outros cozinheiros do país para criar um menu inspirado numa “matrix” enviada por um chef de outra nacionalidade e que está, de momento, impedido de trabalhar, cujo nome seria apenas revelado no final.
A escolha, contava José Avillez ao final do almoço, “foi muito fácil mas nada óbvia”. “Tive dois critérios: pessoas que admiro e com alguma representatividade no país.” Mas também “que, normalmente, andem fora destas andanças”, para “desmistificar um bocadinho” a importância das estrelas, a diferença entre chefs e cozinheiros, entre o fine dining e uma “cozinha mais rústica”. Assim se juntavam a José Avillez e a David Jesus, sous chef no Belcanto, António Galapito (Prado, Lisboa), António Loureiro (A Cozinha, Guimarães, uma estrela Michelin), António Nobre (Degust'AR, Évora e Lisboa), Diogo Rocha (Mesa de Lemos, Viseu, uma estrela Michelin), Noélia Jerónimo (Noélia e Jerónimo, Cabanas de Tavira), Pedro Pena Bastos (Cura, Lisboa), Rodrigo Castelo (Taberna Ó Balcão, Santarém) e Vasco Coelho Santos (Euskalduna, Porto).
Há umas semanas, chegara-lhes uma lista de oito receitas, “todas em francês”, com ingredientes que tanto puxavam ao Mediterrâneo como levavam ao Oriente, trocando as voltas a quem tentava encontrar pistas reveladoras do autor daquela “matrix” (no final, seria revelada a chef mistério: Céline Pham, francesa com ascendência vietnamita e passagem por restaurantes como Saturne e Septime, em Paris). Cada chef convidado escolheu uma receita para reinterpretar e criar um prato diferente. “O giro é cada um trazer alguma identidade também para isto, alguma personalidade”, apontava Avillez.
À mesa, os dois primeiros pratos resumiam esta ideia na perfeição, inspirados na mesma receita mas completamente diferentes: de um lado, vieira curada com dashi de cenoura e gengibre, nabo e pickles de pêra; do outro, uma cenoura com molho de vieira, truta e limão. Começava também, inevitavelmente, um outro jogo: adivinhar quem tinha confeccionado o quê, com direito a vários enganos e muitas surpresas. Abriram a experiência, descobriríamos depois, António Loureiro e Diogo Rocha.
Na verdade, o objectivo era que a autoria se mantivesse anónima e, à saída, no envelope lacrado que nos seria entregue com o alinhamento da ementa, nenhum dos pratos vem assinado. “Com este banho de humildade todo que nós levámos, com o tapete puxado pela covid, acho que nos dão importância a mais”, tentava explicar Avillez. “Somos só cozinheiros. Querem que sejamos políticos, que representemos isto e aquilo, que estejamos na linha da frente. Temos a nossa importância, [mas] acho que é mais ali dentro”, defendia, apontando na direcção da cozinha. “É bom passar despercebido e dar protagonismo ao que é realmente importante: aquilo que cozinhamos.” O evento não era uma competição entre nomes da gastronomia portuguesa, mas uma “união pela positiva”. “É com isto que estamos aqui a fazer que vamos conseguir superar tudo isto, ou seja, é a trabalhar, a criar, a reinventarmo-nos.”
O segundo momento do almoço desta quinta-feira – servido em três turnos diferentes – trouxe à mesa um prato de beterraba, vinagrete de cidra, groselhas, caldo de presunto alentejano e coentros (António Nobre) e um inusitado takoyaki de bifana e boletos (Vasco Coelho Santos). De seguida, talvez o momento alto da refeição, com uma surpreendente ostra com molhinho (estômago) de borrego e maçã verde (Rodrigo Castelo) e um delicado caril de carabineiro, servido em chávena de café da Vista Alegre, com pastel de pombo, um prato acrescentado por José Avillez, “um bocadinho inspirado no todo das receitas” recebidas.
Os pratos principais, curiosamente, seriam todos de peixe: enguia com batata, trompetas da morte, azedas da praia e líquenes (“Estamos numa das melhores épocas do ano de enguias e vamos ter também um prato no restaurante com enguias, quando reabrirmos a 15 de Dezembro, portanto foi juntar um mais um”, contava Pedro Pena Bastos); dourada de anzol, arroz do Sado, yuzu e coentros (António Galapito) e uma sopa de peixe, com o pargo e o gengibre da receita original, e uma tosta de salmonete com molho de fígado de salmonete (Noélia Jerónimo).
“Queria escolher as ostras, mas quando me apercebi, as ostras já tinham ido. Depois, falei com o José [Avillez] para fazer um arroz de peixe, mas também já havia. Então decidi fazer uma sopa de peixe”, contava Noélia, visivelmente feliz. Quando Avillez fez-lhe o convite para participar, vieram-lhe as lágrimas aos olhos. “Nunca imaginei um dia ter este privilégio de ser convidada para algo tão importante. Gostei muito. Fiquei completamente com as pernas bambas.” A pandemia tem sido particularmente “violenta” para a “cozinheira dos chefs”, como é conhecida no sector. Depois de meses fechado para obras e outro mês encerrado durante o estado de emergência, o restaurante de Cabanas de Tavira, no Algarve, reabriu um mês para encerrar de novo, após um surto de covid-19 entre a equipa, incluindo a cozinheira. “Até hoje estou para saber onde fui buscar forças para conseguir abrir o restaurante assim que testei negativo”, confessa. “Estava tão debilitada.”
Era inevitável que a pandemia e os efeitos nefastos que está a provocar no sector se infiltrassem em todas as conversas. Mas o ambiente queria-se, sobretudo, descontraído e de celebração, com os clientes recebidos ao som de violino e concertina e um urban sketcher, Mário Linhares, a criar uma “reportagem desenhada” da atmosfera vivida na cozinha.
Por isso, para sobremesa, a equipa do Belcanto decidiu desconstruir as receitas recebidas e criar “um corneto de leite de cabra com caramelo” e nuvens de yuzu que, ao derreterem-se na boca, num contraste de temperaturas, criavam novas nuvens pelas mesas, exaladas, entre risos, pelos clientes. A ideia era reflectir o espírito do evento. “De repente, uma data de miúdos, que já não são tão miúdos assim, juntaram-se para fazer um almoço todos juntos. Há uma emoção infantil nisto tudo e queria que a sobremesa representasse um bocadinho isso”, apontava Avillez.
Desde o início que o mantra do Gelinaz é levar os chefs a adaptarem-se a situações incertas e a explorar novos territórios. A “pensar diferente”, a “fazer diferente”, a “cozinhar de forma diferente”, a “empurrar em sentido contrário” sem perder a identidade. “Vá pelo inesperado, camufle-se, adapte-se a situações cada vez mais mutáveis. Reinvente-se a toda a hora”, lê-se no site. Talvez o manifesto nunca tenha sido tão real ou necessário.
“Já chorei, já não dormi, todos estes meses que já passaram. A ver muita coisa a passar-me por meio dos dedos”, recorda Avillez. “A única hipótese de levar isto tudo é pela positiva, reinventarmo-nos e pensarmos que é, de facto, nestas alturas que se vê quem consegue.” Para Pedro Pena Bastos, à frente do Cura, o novo restaurante do Hotel Ritz, aberto em meados de Setembro, há agora que “agarrar em todos os detalhes que achávamos que já estavam concretizados e revistos e voltar a lançá-los”, sem “deixar que o projecto entre num piloto automático”. “Temos de nos tornar hipercriativos.”
Para o cozinheiro, é um “orgulho” participar num evento desta natureza, “principalmente na fase em que estamos, em que precisamos imenso de nos apoiar uns aos outros enquanto cozinheiros, chefs, empresários.” E uma oportunidade de “sensibilizar a comunidade” para a crise vivida no sector, mas também para o trabalho e dedicação colocado em cada restaurante e para o cumprimento das medidas de segurança e higiene impostas pela Direcção-Geral de Saúde. “É, no fundo, uma ajuda para nos devolver à normalidade ou, pelo menos, de nos aproximar dessa normalidade, de uma parte sociável a que já não estávamos habituados.”
À saída, no envelope entregue com a ementa do evento, vem impressa uma única citação, de Álvaro de Campos: “Tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Um grito de esperança em dias melhores.